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A ciência de Júlio Verne

Júlio Verne (Jules Gabriel Verne), escritor francês, nascido em 8 de fevereiro de 1828 e falecido em 24 de março de 1905, aos 77 anos, é, sem dúvida, um dos maiores nomes da literatura, tendo escrito mais de 60 novelas, sido consagrado em 140 idiomas e um dos autores mais traduzidos de todos os tempos, perdendo apenas para Agatha Christie. Além de gênio, visionário, escritor e profeta, ele, sem sombra de dúvida, pode ser considerado também imortal. E, enquanto Mary Shelley é a mãe da ficção científica, com seu romance Frankenstein, Júlio Verne é definitivamente o pai.

Muita gente se apega muito ao fato de ele ter profetizado uma cacetada de tecnologia em sua obra, mas é isso o que ficção especulativa é, por definição. E como o próprio Júlio Verne dizia “se você pode imaginar, outros podem realizar”, é só uma questão de tempo. Realmente, ele pensou em vídeo conferência numa época em que nem existia televisão nem cinema; em helicópteros dezenas de anos antes de ser inventado, submarinos movidos a energia elétrica inesgotável, coisa que alcançamos com a energia nuclear anos e anos depois do autor já ter morrido. Seu conhecimento científico apurado combinado à sua imaginação eram características de sua genialidade, isso é um fato, mas eu sempre me impressionei muito mais com a capacidade de ele escrever tantas novelas em tão pouco tempo, ainda que haja explicação tanto para a sua genialidade quanto para a prolificidade. É bem simples, na verdade. Ele estudava pra cacete.

A gente tende a romantizar autores clássicos, endeusá-los, como se eles tivessem sido tocados por alguma entidade, como se tivessem psicografado as palavras certas do além na hora certa, o que eu acho um desrespeito e um profundo descaso. Júlio Verne escreveu novelas, romances, peças teatrais, ensaios por mais de quatro décadas, escrevia seis horas por dia e lia e estudava por quatro na biblioteca perto de onde morava. Lia de tudo, desde diários científicos e artigos de exploradores a jornais, e fazia anotações o tempo todo sobre o que aprendia na matemática, geografia, física e ciência. Ele dedicava toda sua energia a aprender mais sobre aquilo que desejava contar em forma de história.

É curioso que olhando em retrospecto, Júlio Verne, que sempre quis ser o herói das suas histórias, viver as aventuras incríveis que escrevia, foi ousado e corajoso para seguir seus sonhos exatamente como seus personagens. Imagina você um filho de advogado respeitado querer ser um dramaturgo em pleno século XIX. O pai bem tentou colocá-lo no caminho das leis, mas Verne tinha outros planos. E a vida de artista, apesar de pobre, aflorava seu lado sonhador e otimista, como todo bom escritor, não é mesmo?

E vamos combinar que viver em Paris na época de Victor Hugo e Alexandre Dumas não devia ser pouca coisa. O próprio Alexandre Dumas produziu sua primeira peça teatral que foi exibida por duas semanas, o que era bastante pra época em se tratando de autores desconhecidos. Um tempo depois, foi Dumas quem apresentou Verne a um dos principais editores da França, Jules Hetzel, que o adotou praticamente como filho por 30 anos. Hetzel queria ir além de entreter os leitores, ele queria educá-los de alguma forma, e as aventuras de Verne com suas descrições apuradas e científicas eram justamente o que ele precisava para atingir um público maior e de todas as idades.
Eu li meu primeiro livro de Verne quando era adolescente e de novo, muito tempo depois, já adulta. Da primeira vez, não entendia metade das suas descrições, mas até aí eu sempre fui mais das ciências humanas. Eu me interessava pelo mistério dos personagens, pelo que era dito e o não dito, as relações entre os protagonistas e os antagonistas, a exploração de terras novas e o desconhecido. Depois de adulta e de saber o quanto a parte científica era importante para Verne, passei a dar mais valor às descrições longas e cansativas. Existe um contexto que vai muito além da paixão de Verne por barcos e viagens pelo mar.

Uma de suas maiores inspirações era a história de Robinson Crusoé, que criava uma atmosfera de um mundo exótico, excitante, e mostrava a capacidade de um personagem, com apenas os elementos que encontrava ao redor e sua engenhosidade, tornar o mundo funcional e melhor. Seu autor favorito era Edgar Allen Poe, um dos autores mais conhecidos na literatura por usar a técnica de verossimilitude, de aproximação da verdade, de usar a ciência nas histórias para torná-la mais palatável. Imagina só… século XIX, começo da revolução científica, em tudo quanto é canto e jornal que ele lia, as pessoas especulavam sobre as possibilidades que a ciência podia trazer para a humanidade. Com o espírito aventureiro que ele tinha e a habilidade para estudar e escrever sobre, por que ficar de fora?

Desde seus primeiros textos em revistas em 1851, passando por suas obras mais conhecidas como Cinco semanas em um balão, Viagem ao centro da Terra, Da Terra à Lua, 20 mil léguas submarinas, A volta do mundo em 80 dias até 1905, Verne se manteve fiel à busca pelo desconhecido e pelo exótico, com suas viagens de descobrimento, a luta entre o bem e o mal, as forças da natureza e sua técnica invejável de descrever situações e objetos ficcionais que faziam leitores duvidar do que era real ou não.

Hetzel acertou em cheio quando vislumbrou a possibilidade de Verne atingir o público maior e de todas as idades. Foi praticamente um golpe tão rápido e certeiro que ninguém nem viu de onde veio. Com seus livros, Verne falava diretamente com o lado sonhador das pessoas, numa época em que nem todo mundo podia viajar e conhecer o mundo. Ele mostrava para todos como o mundo havia mudado com a ciência e o que ainda podia mudar, se levássemos o que tínhamos de tecnologia até além de seus limites. As pessoas não só se identificavam ou se imaginavam no lugar dos heróis como passavam a se interessar pela ciência, que nunca foi popular. Ele abriu os olhos do povo para o lado romântico do conhecimento científico e isso, pra mim, já é um feito e tanto. O fato de ele inspirar e incentivar a juventude a ser empreendedora e querer transformar o mundo não é nem de longe pouca coisa.

Tem um vídeo muito bacana que junta entrevistas de vários profissionais em áreas da ciência exploradas por Verne em suas ficções, que provam sua importância nas transformações do mundo e na carreira dessas pessoas. Não é à toa que Júlio Verne ganhou uma cratera na Lua com seu nome. “Oi, meu nome é Júlio Verne, ganhei uma cratera na Lua com meu nome, muito prazer, e você? O que fez de relevante nessa vida maluca?”

A questão é que as pessoas vão sempre precisar de viagens extraordinárias, não só na época de Júlio Verne quando não existia tevê e as pessoas não viajavam com facilidade e realmente precisavam dessas aventuras, mas hoje também! E amanhã. E depois de amanhã. Porque suas histórias, muito além de tecnologias e especulações, falam diretamente com nossa curiosidade, nosso lado explorador, nossa busca pelo desconhecido e nos encoraja a ser mais e buscar mais sempre. Verne é um dos autores que mais me inspirou a correr atrás do que eu amo, ainda que parecesse impossível alcançar. Mais que tudo, ele me ensinou que preciso me movimentar e estudar pra cacete, se pretendo conquistar algum espaço, e que nada vai cair de bandeja pra mim.

Por último, mas não menos importante, da mesma forma que Verne em algum momento da vida se tornou descrente quanto à positividade que a ciência teria na vida dos seres humanos – não é nenhum segredo que ele foi bastante pessimista em relação à revolução industrial – a pergunta tão incansavelmente abordada em suas obras, se ela é mais proveitosa que prejudicial a nós, permanece sem resposta, atraindo-nos ainda mais para suas histórias.

Uma curiosidade, para fechar meu texto em homenagem ao aniversário do autor, é que, com as mudanças que a revolução industrial trazia, ele achava que a cultura estava vivendo um declínio, e qual não foi sua surpresa ao entrar numa livraria, perguntar sobre os livros de Victor Hugo e o atendente não saber quais eram os títulos. Para ele isso foi uma afronta, e eu imaginei Júlio Verne se desesperando como essa leitora aqui nesse vídeo que vi recentemente na timeline de um amigo. #euri

#Fui

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One thought on “A ciência de Júlio Verne
  1. Por incrível que pareça, ainda não tinha lido nem uma obra do consagrado Júlio Verne, agora me dou conta do tesouro que estava perdendo. Depois de ler volta ao mundo em oitenta dias, me interessei muito em como esse autor detinha tanto conhecimento técnico, em uma época que nem existia internet ainda e graças ao seu bem escrito artigo, compreendi que o tempo de estudo dedicado por ele, fez toda a diferença. Parabéns pela sua brilhante interpretação a respeito do autor.

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