Coluna

À frente de seu tempo

No especial da comediante Hannah Gadsby, na Netflix, ela comenta sobre as pessoas que sempre falam que determinado artista estava “à frente de seu tempo”, e citando Van Gogh, ela chega a conclusão que não, que Van Gogh, assim como outros artistas incompreendidos, foi um perfeito fruto da época em que viveu, reagindo à realidade a sua maneira. Talvez por excesso de sensibilidade ele conseguia perceber melhor o mundo que vivia e o expressava com mais paixão. Se apenas hoje reconhecemos o valor de Van Gogh, é um problema da sociedade que o cercava na época, e não do artista. Essa colocação de Gadsby me fez pensar sobre essa expressão, até que Anne With an E voltou com uma segunda temporada na Netflix. Aliás, o especial de Hannah Gadsby me fez pensar em muita coisa e ele deve ser visto pelo máximo de pessoas possíveis, mas ele não é o tema dessa coluna hoje, quero conversar sobre a Anne Shirley, personagem que pode ser rotulada facilmente como “à frente de seu tempo”.

Primeiro uma rápida explicação, Anne With an E é uma série da Netflix baseada no livro de 1908 “Anne of Green Gables”, de L. M. Montgomery (Lucy Maud Montgomery). Ele conta as aventuras da órfã Anne Shirley que é adotada pelos irmãos Matthew e Marilla Cuthbert, na fictícia cidade de Avonlea, na Ilha Prince Edward, no Canadá. A principal razão para os irmãos Cuthbert adotarem uma criança, era ter um menino para ajudar Matthew com os afazeres da fazenda de Green Gables. Porém eles acabam com Anne, que decide provar a eles que ela também tem seu valor.

Anne é uma menina que tenta sempre ver o lado positivo das coisas e que não aceita ser derrotada. Muito falante e inteligente, ela usa palavras difíceis e ama ler. Cinco minutos com ela parece ser muito, mas logo você entende que tudo aquilo é a forma que Anne descobriu como amenizar a vida dura e triste que sempre teve. Ela perdeu os pais muito cedo e viveu em orfanatos e com famílias temporárias por muito tempo, sempre sendo maltratada e incompreendida, afinal uma menina deve ser quieta, recatada e sem ideias próprias, principalmente no final do Século XIX, época em que acontece sua história.

É certo que a série é uma adaptação do livro de Montgomery, e se parece uma modernização da personagem, não é, pois a essência de Anne está lá. Na série, sua bravura e inteligência ganharam mais destaque para combinar com a atualidade e inspirar outras meninas.  Não há como pensar que tanto L. M. Montgomery, assim como Anne, são mulheres à frente de seus tempos. Quão inovador é ver uma menina que quer ser escritora, que ama os livros acima de qualquer coisa, que não se enxerga como diferente dos meninos e que luta pelo que acredita em uma história de 1908. Mas, voltando a Hannah Gadsby, escritora e personagem são, sem dúvida, frutos da época em que vivem. Refletem o mundo que as cercam.

Anne sofreu muito até chegar à casa dos Cuthbert, sempre ouviu que era feia, inútil, inapropriada e vários outros defeitos, por não se adequar ao que se pensava como deveria ser uma “mocinha” naquela época. A menina ruiva sardenta de sorriso largo e imaginação fértil, é a heroína perfeita a ser redescoberta em um mundo em que meninas como Anne existem aos montes, mas ainda hoje escutam, por aí, que são inapropriadas. Anne não é uma menina à frente de seu tempo, ela é exatamente o que ela deveria ser lá em 1908. Sua mensagem é muito clara e perfeita para o mundo que a viu surgir, porque é através de Anne, sua escritora e muitas outras que vieram depois, que chegamos a um mundo em que Anne seria perfeitamente normal e apenas mais uma outra menina.

Veja Anne With an E, que já está na segunda temporada na Netflix, mas também veja Nanette, o maravilhoso especial da Hannah Gadsby, e perceba que caminho maravilhoso muitas mulheres percorreram até aqui, a partir de uma até chegar na outra. Um caminho que precisamos continuar percorrendo para que todas nós possamos viver o hoje, como mulheres de hoje, e não como possibilidades para o futuro.

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