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as reações das imagens diante de 2019

Cheiro de Livro

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Em 2017 Steve Rose cunhou o conceito de pós-horror, marcando temporalmente uma estética, um ethos e um pathos e seus respectivos fins e superações. Rose anunciava que “um novo tipo de filme de horror aparecia nas salas de cinema – filmes que substituíam o jump-scare por um pavor existencial”.

O conceito, obviamente, não sobreviveu, morrendo no início do filme – bem, por outro lado, aqui está novamente, como um morto-vivo, conceito-zombie ou o que seja, iniciando um brevíssimo ensaio sobre a reação de algumas imagens diante do radical ano de 2019, Trump, Bolsonaro e outras farsas e fábulas perversas.

A obsessão em rotular produtos audiovisuais é um vício estadunidense – hollywoodiano, em parte – e remete aos cinemas de gênero, narrativas clássicas, planos comportados, linearidade cronológica etc. Essas divisões, separações, organizações e subdivisões infinitas são, simultaneamente, estratégicas e interessantes: segmentam e mapeiam públicos e gostos, e abrem fissuras para possibilidades e misturas instigantes. É possível adjetivarmos o cinema de acordo com agrupamentos estéticos, movimentos políticos, plasticidades, realismos, capital ou não para realização, sexualidades e gêneros, efeitos especiais, ambiências… as possibilidades são tantas quanto nossas imaginações possibilitarem. Extremo, carnal, queer, pós-pornô, apenas para nomear alguns.

O movimento, nesse breve ensaio, é olhar para alguns estados mistos de 2019 – não vou analisar filmes e sim pensar que algumas narrativas audiovisuais borraram as fronteiras dos gêneros cinematográficos e assumiram as questões políticas urgentes do nosso tempo – um tempo no qual os afetos se misturam em híbridos monstruosos de sensações. Esses hibridismos foram responsáveis por grandes bilheterias e movimentaram debates, textos, discussões e, obviamente, memes. É necessário fabular, imaginar possibilidades. Essas narrativas misturam sci-fi, terror, melodrama, suspense, comédia, elementos de distopias e apocalipses para compor as instabilidades dos nossos tempos.

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Os filmes abordados fazem parte do circuito hegemônico de produção e circulação; dirigidos e escritos por homens cis (menos Parasita, que teve co-autoria de Han Jin-won), muitas questões de gênero e sexualidade permanecem invisíveis e/ou tratadas sem o devido cuidado ético – – como, por exemplo, a lesbianidade de Domingas e Carmelita (Sônia Braga e Lia de Itamaracá). Uma das propostas desse ensaio é, então, buscar as fissuras nessas narrativas, as rachaduras: os lugares nos quais podemos aferir outros sentidos, imaginar possibilidades e rasurar as narrativas hegemônicas.

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Bacurau, 2019 – As estratégias de proteção, articulação do comum e do coletivo, são desenhadas na fábula de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles; as novas tecnologias de controle e vigilância aparecem tanto como aliadas quanto inimigas. É no resgate e no ativar de outras temporalidades (entre a materialidade da memória) que se encontra a violenta poética da sobrevivência.
Nós, 2019 – Na estranha fábula de Peele sobre duplos (clones) como corpos subalternizados que existem para uma vida de condições precárias, situações impostas e, em última instância, para a morte, a narrativa acompanha uma família negra, liderada pela mãe (a impecável Lupita Nyong’o), na luta pela sobrevivência durante um insólito apocalipse.

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Nós (Jordan Peele, 2019), Bacurau (Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles, 2019), Parasita (Bong Joon-ho, 2019) e Coringa (Todd Phillips, 2019) constelam no ano de 2019 como iluminações sintomáticas da cultura pop. Sintomas de uma época, mas qual a doença? Ainda que alguns sintam conflito em diagnosticar, as práticas e políticas neoliberais vinculadas a uma paixão narcísica, individualista e hiperconsumista retroalimentadas por uma cibercultura capturada emergem como inflamações, febres e morte. O esfacelamento das ideias de comum e coletivo também preparam o terreno para esse outro/novo modus operandi.

No IMDB as seguintes categorias aparecem para esses filmes: crime, drama, mistério, thriller, ação, aventura, horror, comédia. No site rottentomatoes os gêneros aplicados também não são muito distintos. A sensação é uma certa dificuldade ou confusão ao tentar dar conta desses filmes. As narrativas transitam por questões plurais e as formas dos filmes modulam entre diversos gêneros, oferecendo uma experiência híbrida, multiterritorial (ver os trabalhos de Rogério Haesbaert) instável aos expectadores – enquanto se assiste a esses filmes é possível acessar diversos estados emocionais, situações, afetos, sensações, memórias e modos de sentir.

São filmes radicalmente contemporâneos – dialogam com as crises, ansiedades, angústias, medos, desejos e prazeres da nossa época. São narrativas que tratam dos resíduos dos projetos e políticas neoliberais dos últimos quarenta anos. Os duplos de Nós, a comunidade de Bacurau, as famílias de Parasita e Arthur Fleck em Coringa são os corpos e subjetividades descartáveis (matáveis) na necropolítica atual.

Em dimensões simbólicas – ou não –, esses filmes articulam também os espaços da superfície e da profundidade. Mais evidente em Nós e Parasita, com cenas de descidas vertiginosas e infinitas às profundidades do sistema (ou cistema, se quisermos apontar para também para um regime cisheteronormativo), Bacurau e Coringa também apresentam essas dualidades nas relações público/privado, realidade/fantasia, analógica/digital, mesmo/outro

Nós, 2019 – Os duplos se confrontam – a troca/ocupação de lugares provoca ruído no sistema de controle e opressão. Nesse caso, a reação dos duplos que vivem nos subterrâneos é a estética e a poética da violência: destruir o Mesmo – aqueles que habitam a superfície, o visível – para que a Outridade – os que habitam as profundidades, os invisíveis – tenha espaço. Eles realizam isso em um gesto coletivo de reação e tomada de posição.

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Nessa esteira de críticas, o novo Brinquedo Assassino (Lars Klevberg, 2019), também de 2019, traz questões pertinentes sobre o digital, IA, precariedade e exploração da mão-de-obra. No início do filme, um funcionário precarizado de uma multinacional sabota o sistema operacional do boneco digital Buddi: ao invés de amigável e subserviente, o brinquedo torna-se rebelde e violento. Na lógica superfície-profundidade (ou, se quisermos, Norte e Sul globais), o brinquedo vai ser vendido nas enormes lojas de departamento dos Estados Unidos.

Brinquedo Assassino também marca uma interessante mudança paradigmática: nos anos 80, o boneco era possuído pelo espírito de um assassino durante uma noite de tempestade; 30 anos depois, o mal vem na forma digital de um erro de programação – sinais dos tempos.

Brinquedo Assassino, 2019 – Chucky como uma Inteligência Artificial em colapso. Com ecos de Siri (Apple) e Alexa (Amazon), o filme, sob a ótica dos perigos das novas tecnologias, flerta também com o universo da série Black Mirror. Esse filme, talvez, deixe mais evidente as consequências perversas dos projetos políticos neoliberais: os corpos que irão sofrer as violências provocadas pelo boneco defeituoso são os corpos empobrecidos, precarizados.

Não se trata, como alguns tentam pacificar, daqueles com os quais o sistema falhou. Trata-se daqueles com os quais o sistema (o heterocapitalismo branco, financeiro e neoliberal) nunca se importou. Preciado, Butler, Fanon, Bauman e Milton Santos pensam esses outros aspectos da globalização, suas consequências, seus esquecidos e suas possibilidades – ao invés de um projeto vivo e reluzente, vemos agora como um zombie retornado dos mortos, a expansão do projeto colonial – aliás, a não-metáfora do zombie se prolifera de forma viral nos produtos audiovisuais do século XXI.

Reações coletivas, esgotamento e vingança

Tampouco esses filmes são apenas sobre vinganças – as personagens estão reagindo aos modelos de expropriação e destruição de suas vidas; as personagens estão se posicionando, tomando posições éticas diante dos projetos não acordados, unilaterais e hierárquicos de exploração e extrativismo.[1]

Carrie, de Brian de Palma, de 1976, diz muito sobre isso – a personagem central ocupa um lugar tríplice de vítima, heroína e monstro[2]. Esgotada física e mentalmente diante da grotesca plateia, na cena do baile de formatura, Carrie usa seus poderes para destruir as instituições políticas que a oprimiam: a Escola, a Religião e a Família (instituições disciplinares e de confinamento).

Carrie, 1976 – É possível rasurar Carrie no sentido de que se trata menos de uma vingança do que da aniquilação dos pilares do sistema heteronormativo estético e político que a conduzem para esse estado de esgotamento e reação. Durante o filme, Carrie é usada, humilhada e trapaceada em esboçar uma reação vital diante das violências.

Esses filmes de 2019 convocam para as telas o esgotamento e o descontentamento diante de um sistema econômico que funciona como uma máquina de triturar corpos subalternizados. Nós é um projeto político de tomada do mundo; um projeto performático e político costurado pela urgência das questões raciais, lógicas de sobrevivência e resistência – os outros corpos que sustentam a superfície; uma outridade roubada de suas existências e potencias de vida.

Bacurau, entre outras coisas, é sobre aquilombamento, coletividade – a fabulação de uma forma de resistência performada por corpos que raramente estão na centralidade das narrativas.

Bacurau, 2019 – A reação é um gesto coletivo, uma rede ativada e conectada, na qual todos tomam posições, reagem.

Parasita é uma ficção complexa sobre a precariedade dos trabalhos e condições de vida, as novíssimas tecnologias de comunicação e as brechas possibilitadas nesses novos jogos; as situações são conduzidas ao extremo e as formas de re-ação se afunilam para a catarse da violência – seja do espectador ou das personagens. Como não pensar em todos esses supercelebrados aplicativos de serviços (Uber, Rappi, Nubank, Smartfit, iFood) que, por outro lado, expandem e corroem as práticas e políticas trabalhistas nas promessas de uma vida livre e lucros reais.

Parasita, 2019 – Vivendo em condições precárias e realizando trabalhos sem garantias e mal remunerados, o clã Kim entra em contato com a rica família Park. Diante das radicais diferenças econômicas e sociais, os Kim reagem se aproveitando do que podem naquele contexto. As reações, em Parasita, são complexas e funcionam em camadas – há sempre um nível mais abaixo. O título, é claro, dialoga com a estratégia de sobrevivência. De acordo com o dicionário Houaiss, na primeiração definição, no campo da ecologia: 1.organismo que vive de e em outro organismo, dele obtendo alimento e não raro causando-lhe dano. É no final do filme, após um tenso escalar das situações, que há uma reação diante de todas as violências produzidas por um mundo no qual, cada vez mais, a concentração das riquezas se encontra nas mãos de poucos. A lógica colonial de exploração e extrativismo serve como os pilares simbólicos desses filmes.

Coringa traz tintas mais obscuras e, talvez, conflitantes, ao se aprofundar em uma personagem que comporta os dramas éticos, políticos e econômicos de uma época. Não contemplado nem acolhido pelo sistema, Arthur Fleck conduz uma existência em descida vertiginosa. Enquanto a realidade se desdobra cruelmente, Fleck tenta encontrar brechas para existir. Cada vez mais raras, ele recorre aos recursos extremos da violência e destruição – do caos. Através do espetáculo e da desorganização do político, o Coringa ativa a revolta violenta, a exaustão e a paranoia – afetos negativos. As identificações e adesões aos projetos políticos e éticos desenhados no filme funcionam de acordo com as nuances da espectatorialidade – quem assiste. Qualquer semelhança de Coringa aos governantes ressentidos que mobilizam os piores afetos da população não é mera coincidência.

Coringa, 2019 – “Put on a happy face”. Saúde, cuidado, acolhimento, amor…contínua e repetidamente, tudo é negado a Fleck. A possiblidade de uma saída, através da comédia, surge tarde demais. O Coringa entende que seu (e da mãe, da vizinha) estado de precariedade faz parte de um projeto político de exploração e descartabilidade dos corpos. Os milionários de Gotham City, assim como a família Park em Parasita, têm nojo das populações empobrecidas por seus próprios feitos e criam distâncias e formas de não conviver. Em Parasita o cheiro é um elemento importante nessa marcação.

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Diante da fixidez, o movimento

Se a cultura pop é termômetro da sensibilidade, podemos observar uma tensão crescente entre o analógico e o digital; entre os modos de vida precários e privilegiados; entre o espetáculo e o real; entre ricos e pobres; entre Norte e Sul globais; não apenas as tensões, mas as fábulas de reações diante desses modelos de mundos. As pedagogias desses filmes dizem sobre as possibilidades de movimentos diante de regimes éticos, estéticos e políticos que buscam fixar e aprisionar os corpos, os imaginários e as imagens.

O pós-horror, nesse sentido, parece meramente um campo de articulações estéticas com pouca ou nenhuma vitalidade. Horror, o medo como prazer estético, é uma experiência que diz respeito às vivências íntimas e coletivas, às bagagens que carregamos e ao quanto conseguimos nos vincular com outridades.

Narrativas audiovisuais podem abrir fissuras em múltiplas superfícies. Por exemplo, quando Jordan Peele, em resposta ao Globo de Ouro ter classificado Corra! (Peele, 2017) como comédia, afirma que se trata de um documentário – Peele convoca para essa marcação as vivências e experiências sociais dos corpos negros e denuncia a estratégia política operada pela branquitude ao tentar esvaziar as narrativas de Corra!. Esse esvaziamento se dá na fixação do filme enquanto ‘comédia’. Obviamente, não há algo contra o gênero ‘comédia’, mas Corra! é sobre as violências e terrores produzidos pelo racismo; é sobre medos, angústias e ansiedades que a branquitude produz e os corpos negros sentem. É pertinente, então, entender que aprisionar um filme dentro de uma categoria é um gesto político e ético. Situar Corra! como documentário traz a dimensão da verdade e da realidade dos eventos no filme. E é indissociável o projeto colonial racista dos modos de operação do neoliberalismo contemporâneo (ver Necropolítica, de Achille Mbembe).

Qual o seu terror favorito?

Para encerrar, sobre essa questão de gêneros, em Pânico 2 (Wes Craven, 1997), quando o assassino pergunta a Randy (Jaime Kennedy) “what’s your favorite scary movie?”, ele responde: “Showgirls, absolutley frightening!”

Os filmes abordados aqui tratam, de maneiras distintas, das ruínas materiais e psíquicas dos regimes econômicos, políticos, éticos e estéticos. E oferecem, talvez, pistas ou vestígios – imagens que reagem – para possíveis formas de sobreviver e habitar esse presente.



[1] Ver os trabalhos de Denise Ferreira e Jota Mombaça.

[2] Carol J. Clover.

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