King é Rei

Belas Adormecidas

Meu livro favorito do King é “A Dança da Morte”, lançado pela primeira vez em 1978 e relançado em 1990, uma versão definitiva e editada pelo próprio autor. Fala sobre uma epidemia de gripe que mata mais da metade da população mundial, transformando o mundo em caos. Dentro desse cenário, o Mal tenta tomar conta do mundo, enquanto que o Bem se defende para salvar o resto que sobrou da humanidade. Essa visão maniqueísta cabia muito bem dentro do contexto da época quando os EUA viviam a Guerra Fria, elegiam Ronald Reagan como presidente por oito anos e a AIDS surgia. Stephen King é um homem político, completamente preocupado com questões sociais, basta seguir sua conta no Twitter para saber disso. Ele deixa muito clara sua posição e indignações, o que combina com sua escrita recheada de crítica social desde sempre.

Se “A Dança da Morte” é o retrato fiel dos EUA da década de 1980, Belas Adormecidas (Sleeping Beauties, Suma de Letras, 2017, traduzido por Regiane Winarski) é o da época em que vivemos agora. Quando no fim de 2016, Donald Trump ganhou a eleição para presidente dos EUA, King sentiu-se tão desolado que se afastou de todas as redes sociais, alegando que precisava se refazer para enfrentar aquele pesadelo que começava. A vitória de Trump era (e é) o efeito de um mundo que cai no conservadorismo, que parece se fechar cada vez mais para as mudanças e que não tem o mínimo interesse em evoluir. Um baque que pegou todos desprevenidos, mas que também despertou o instinto de luta naqueles que não iriam aceitar mais nada disso calado. No início de 2017, logo após a posse de Trump, aconteceu em boa parte do mundo a Marcha das Mulheres, movimento que começou lá na América de Trump e ganhou força pelo mundo, mostrando que a Terceira Onda do Feminismo é a mais forte até agora. Cito a Marcha por estar mais ligada à minha realidade como mulher e por estar diretamente ligada ao tema do livro. Mas outros movimentos de força das minorias estouraram pelo mundo para mostrar que ninguém vai aceitar mais nada calado. O próprio Stephen King voltou ao Twitter com força total, decidido transformar a vida de todos os políticos conservadores em um inferno, fazendo cobranças e mostrando claramente seu descontentamento.

Voltando a Belas Adormecidas, King se uniu a seu filho mais novo, Owen King, para criar um conto de fadas macabro a quatro mãos. Eles voltam ao tema de uma epidemia para criar uma alegoria sobre o mundo atual. Todas as mulheres foram acometidas de uma estranha doença em que elas dormem e não acordam mais. Conhecida como Aurora, a estranha síndrome as coloca em sono profundo dentro de um casulo como o de uma mariposa. O ponto focal do livro é a pequena cidade de Dooling da fictícia Região do Tri-condado em Appalachia na Oeste Virgínia. Apesar da doença afetar toda a população da cidade, a história é centrada na família Norcross – a xerife Lila, o psiquiatra Clint e o filho de 16 anos, Jared -, na prisão Feminina de Dooling, na estranha mulher Eve, que parece não ser afetada pela doença, e outros personagens da cidade. O pânico e o caos tomam conta de todos que passam a saquear lojas atrás de mantimentos, de estimulantes e até drogas ilegais para ajudar que as mulheres não durmam. Mas pouco adianta e aos poucos, uma a uma, elas entram no estranho transe protegido pelo casulo.

Em um momento do livro, enquanto conversa com o Clint, que é psiquiatra da prisão feminina, Eve comenta que poder dormir em paz é um presente para as mulheres. O que faz sentido, já que o livro mostra que sem as mulheres os homens se mostram completamente perdidos. A histeria coletiva que toma conta deles com certeza é porque percebem que de agora em diante terão que tomar decisões e cuidar de tudo que nunca precisaram. Há uma passagem genial que mostra homens em pânico com seus bebês meninos no hospital porque não sabem trocar fraldas e nem como dar comida. Piadas a parte, Stephen e Owen aproveitam o caos para mostrar que sob pressão surge o pior das pessoas, e são os personagens reacionários e extremamente conservadores que se mostram como os verdadeiros vilões. Ao contrário de “A Dança da Morte” não há vilões e mocinhos definidos nessa história, todos apenas tentam sobreviver da melhor forma possível, o que diz muito sobre o momento que vivemos.

No meio do caos, há uma personagem que se sobressai, Lila, a xerife. Ela está cansada, não dorme há mais de 30 horas, não vê seu filho quase metade disso. É questionada pelo marido por conta de um ocorrido na noite anterior ao incidente do sono, mas não se deixa dobrar. King tinha uma tendência de construir personagens fortes a partir de um trauma grande, como sobreviver a um relacionamento abusivo. Lila foge desse padrão, ainda bem. Ela é a xerife e ninguém tem dúvidas de sua competência. Toda a cidade a respeita. Mas Lila é muito real dentro de sua construção, ela aceita o segredo sobre o passado do marido quieta, aceitou ir morar em Dooling em prol da carreira dele e se sacrifica, permanecendo acordada, por senso de responsabilidade. Lila é a definição quase que perfeita do que é ser mulher atualmente, de precisar, na maioria das vezes abrir mão de seu próprio bem-estar pelo do outro e se provar constantemente como forte e competente. Ao seu lado está a misteriosa Eve, uma força da natureza. Ela surge na história vindo de lugar nenhum, ela é linda, forte, sem medo de nada e não aceita besteira de ninguém. Eve é a personificação da força feminina que surge, da mulher que não quer mais ter que se importar com o que é imposto a ela, que quer viver sua vida como ela bem quiser, sem dever nada a ninguém.

Sim, Belas Adormecidas é um livro extremamente político nas entrelinhas de uma forma maravilhosa, com diálogos e situações inacreditavelmente conectadas com a realidade. Mas também é um livro pro-feminismo sem nenhuma sutileza. A alegoria sobre o casulo que protege as mulheres durante o sono, que desperta um instinto de sobrevivência forte naquelas que tem o sono perturbado e o casulo violado, é uma figura de linguagem muito forte sobre o momento em que surgem movimentos como o #metoo. Um conto de fadas necessário para esse mundo que insiste em manter-se agressivo e imutável, mas que sabe que a mudança está acontecendo de todo jeito.

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