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Drogarias

 

As Drogarias

 

Com suas vitrines, luzes frias e ambientes brancos e assépticos, as drogarias contemporâneas oferecem essa ilusão de que a vida é ordenada, categorizada e especializada – cada coisa, cada malefício e cada caixa de cura têm seu lugar. Os corpos transitam ali com uma leveza insustentável, como fantasmas, e depois se enfileiram nos espaços delimitados por dispositivos de confinamento – aquelas colunas metal com as correias.

 

Os produtos, dezenas e dezenas, organizados em prateleiras limpas e vidros reluzentes. Higiene oral, higiene íntima, estética, rejuvenescedores, hidratantes, analgésicos, cabelo – o corpo e os órgãos são seccionados, divididos, espalhados: boca, dentes, olhos, unhas, pele, pés, mãos, estômago, fígado, vias respiratórias, pulmões. Reorganizamos e acessamos nossos corpos a partir das seus déficits.

Entra-se, assim, nesse espaço utópico da saúde do corpo – um mercado que oferece quase tudo para recuperar e prevenir; a esperança de uma ressurreição, de uma outra vida, de um corpo saudável e produtivo – bem como apontam Foucault, Butler, Preciado y outras. Corpos estratificados, aprisionados em um regime cíclico, ético-político de invasão, corrupção e destruição.

 

As drogarias oferecem aos consumidores, em seus ambientes isentos de singularidades – assim como, talvez, em alguma medida, os hospitais e aeroportos – breves salvações. E se pararmos diante de uma somos iluminados pela sensação de que a vida pode ser simples, saudável, organizada; que o nosso corpo, setorizado e desmembrado, pode ser escrutinado e curado. Somos envolvidos por essa estranha sensação de que tudo pode ficar bem. Os juízes da saúde determinam aquilo que deve ser erradicado, aprisionado e mantido.

 

As drogarias são, então, um espaço-território próprio e lógico da necropolítica capitalista contemporânea.

A doença e, em última instância, a morte, são fantasmagorizadas e fetichizadas. À medida que adentramos a arquitetura aparentemente simples de uma drogaria, avançamos na direção de uma interiorização perturbadora da nossa percepção de corpo. Passamos dos protetores e/ou bloqueadores solares, pelos cremes hidratantes e pastas-de-dente para o corredor das dores, gripes, congestões; bandaids de diversos tipos e personagens; curativos e adesivos com propriedades quase mágicas que prometem reduzir as dores nos ombros, na lombar e nas articulações.

 

Não raramente há um balcão de fórmica branca e vidro – tudo muito iluminado, a transparência é ordem. Atendentes que vestem jalecos brancos, simulando uma confiabilidade médica e um conhecimento clínico, perguntam se podem ajudar.

Ali, nos fundos, armários guardam remédios e drogas “mais pesadas”, sob prescrição, tarja preta, vermelha. Ali o atendente verifica sua receita, olha sua cara e vê suas olheiras, uma exaustão no seu olhar: não aguento mais, por favor, me dá qualquer coisa.

 

Há uma oferta interminável ali atrás, uma cartela de pílulas para sua depressão, um antibiótico para as bactérias que se acumulam nocivamente nos recônditos do seu corpo, um anti-inflamatório para a podridão que pulsa quente sob sua pele, um colírio para a conjuntivite contagiosa que gruda seus olhos… tudo que tentamos esconder e conciliar mas que, eventualmente, explode.

 

Nesse sentido, uma drogaria é uma espécie de necrotopia, um espaço da morte e da doença, para a morte e para a doença; uma ambiência quase futurista de drogas que prolongam a vida (?); minimalismo que se choca com o barroco das doenças e dos fluidos abjetos do corpo.

Como Susan Sontag já anunciou, todos nós temos uma dupla cidadania: na saúde e na doença. A necropolítica, o necrocapitalismo exige a produtividade 24/7 (Jonathan Crary), exige um corpo seminal, produtivo e anestesiado: zumbis-fantasmas vagando nas branquitudes alucinógenas de pílulas e produtos para deixar seus cabelos sedosos.

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