Coluna

Frankenstein 200

Penso em Mary Shelley e nas noites que passou assombrada, talvez atormentada por visões insistentes, que retornavam madrugada após madrugada. Ela abria os olhos e ele estava lá, atrás das cortinas, os olhos amarelados como pântanos – mas não era um fantasma.

Penso em Mary Shelley – quais eram seus medos? A solidão? – o grande tema que atravessa Frankenstein: perder todas as pessoas que ama e ser condenada a vagar, imortal, por um deserto frio e branco?

Penso em Mary Shelley e nas mortes que a seguiram após a publicação, em 01 de Janeiro de 1818, de Frankenstein. Penso, ainda, em Mary e Edgar tomando um vinho em um sombrio pub – nós escrevemos as histórias e as palavras se inscrevem em nós como tatuagens que preveem o futuro.

 

Há 200 anos M. S. publicou a primeira versão do livro que pode ser considerado uma das gêneses da modernidade. Sozinho aqui, na minha imunda oficina de criação, penso nesse gesto de criar, de escrever, de arrancar – eu, minha mãe, meu avô…

Escrever até que os dedos doam; escrever porque ainda é uma das poucas estratégias restantes para lidar/sobreviver nesse início de século XXI.

Teria M. S. pensado nisso? Como sobreviver diante de tanta mudança, tanta descoberta, tanta aceleração vertiginosa? Teria ela tentado dar conta dos delírios de um presente não fixo?

 

Fomos, somos arrogantes. Somos filhos de Victor Frankenstein.

Nos últimos 100 anos – no século XX, quero dizer – fabricamos mais do que e possível consumir/aproveitar; criamos mais do que é possível imaginar; vivemos no excesso material e na ausência excessiva; aprisionamos em celas estreitíssimas nossas imaginações, nossa capacidade de delirar, nossas paixões.

E agora, através de luminosas telas e planos ilimitados de internet, consumimos com voracidade atroz o plástico tóxico.

 

O plástico e o metal.

200 anos para que tudo aquilo que criamos (e tudo o que destruímos no processo) se voltasse contra nós com uma violência que nossa débil língua não consegue descrever ou nomear – o monstro, a monstruosidade, o anônimo; o ‘desfamilar’, o estranho.

Os mares se levantam, os icebergs derretem, o sol queima mais, os vulcões explodem, as baleias morrem intoxicadas, comemos peixes reproduzidos em mercúrio e esperamos, ansiosamente, diante das televisões nas salas-de-espera dos consultórios, a cura do câncer.

 

O monstro e a noiva.

Mas não a noiva no sentido da subalternidade, não uma propriedade privada, corpo-objeto para uso e satisfação do macho; a Mulher monstra que traja os restos de uma roupa outrora branca e virginal, agora manchada de sangue, fuligem e lama.

Ela observa de longe e pensa na profecia enunciada por uma outra mulher, em um filme da década de 90, um pouco antes de mais um mundo começar a acabar; um filme que é, por sua vez, uma das versões contemporâneas de Frankenstein. Dentro de um carro, admirando atônitos os monstros (re)criados por um cientista louco, o físico-da-teoria-do-caos fala (quase para si):

– Deus cria o dinossauro. Deus destrói o dinossauro. Deus cria o homem. O homem destrói Deus. O homem cria o dinossauro.

A mulher, Dra. Ellie Sattler (Laura Dern), sozinha no banco da frente, sem olhar para os dois homens no banco de trás, completa:

– O dinossauro come o homem. A Mulher herda a terra.

 

De Metropolis (Fritz Lang, 1927) à Ex-Machina (Alex Garland, 2015), a ciborgue, a inteligência artificial que seja – todo o resto, todo o resíduo é ciborgue, Donna Haraway transa com Mary Shelley, uma vez que humano é o homem branco, hétero, branco… todas as outras alteridades são ciborgues – a monstruosidade é feminina. E o que vemos, em todas essas narrativas, é o macho branco com medo.

 

Gaia

Se a magia de Zeus perde potência e os Titãs reemergem das profundezas do Tártaro, tudo está em jogo mais uma vez. Devemos imaginar que Gaia entrará nessa arena-Caos com novas estratégias – não um corpo servil, terra submissa ao tempo, planeta que serve ao homem.

Mary Shelley abriu os portões do Reino de Hades e os ‘desmortos’ caminham sobre os destroços da modernidade. Resta perceber que não é o tempo de Gaia que está terminando – ela permanecerá quando não houver mais nenhum homem. Tudo gira velocíssimo como o novelo de Ariadne girou em suas mãos, enquanto um arrogante Teseu penetrava nas entranhas do Labirinto.

Imagino Mary Shelley sentada em um banco de pedra, no centro desse Labirinto, acarinhando lentamente a cabeça taurina do Minotauro deitado aos seus pés, enquanto a humanidade se perde em veredas que se bifurcam.

Ela sorri, balança a cabeça e suspira “ah, a humanidade…”.

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