Coluna

O reinado de Momo

O Cheiro de Livro tem uma quantidade enorme de resenhas de livros sobre samba e, principalmente, sobre escolas de Samba do Rio de Janeiro. Tudo culpa minha. Adoro samba e sou uma torcedora entusiasmada das Escolas de Samba. Aviso logo que esse coração aqui bate pela azul e branco de Nilópolis, ou seja, G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis.

Não sei dizer de onde vem esse amor pelos desfiles, mas sei dizer que lembro com uma clareza absurda estar em frente a televisão vendo os mendigos do Joãozinho Trinta com o Cristo de lixo, em 1989 no enredo “Ratos e Urubus Larguem minha fantasia”. Aquele desfile foi decisivo para que eu deixasse de ser uma espectadora de sofá e passasse a ir a Avenida presenciar aquele espetáculo ao vivo.  

Assisti desfile de todas as posições possíveis na Marquês de Sapucaí, da arquibancada popular a camarote. Arquibancada é a minha preferência, se for no setor 11, ali ao lado do recuo da bateria então… Chega a ser irônico que, torcendo por uma escola multi-campeã, o desfile mais apoteótico que tenha assistido ao vivo tenha sido do Salgueiro e o seu “Peguei um Ita no Norte” , mais conhecido como “explode coração”. Nada supera aquela noite com o Salgueiro na avenida, todos cantando o samba e sabendo, ali naqueles parcos minutos, que estávamos vendo algo épico e um desfile campeão.

A paixão pelos desfiles aumentou meu amor pelo samba e isso me fez ler sobre esses dois ícones brasileiros. São dois elementos que formam nossa identidade nacional e pedras fundamentais, no que o historiador Luiz Antonio Simas chama de cultura das ruas. A cultura das ruas é o que define um povo, e a nossa passa pelas raízes africanas, pelas religiões de matrizes africanas, pela mistura de ritmos de todas as etnias que nos formaram e, principalmente, pelas comunidades mais pobres, a maioria da nossa população.

O Carnaval gera uma divisão entre os que detestam os dias de folia, os blocos, a cidade repleta de ruas fechadas e um certo aprisionamento em casa, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, e as pessoas, como eu, que acham maravilhoso ir ao mercado e encontrar um homem vestido de bailarina, uma mulher de super heroína, um grupo almoçando vestido de deuses gregos e ser tudo absolutamente normal.

Os quatro, ou mais, dias de folia tomam as cidades. As ruas ficam repletas de música, nossa música, nossos ritmos. Na Marquês de Sapucaí a nossa história desfila. O regulamento da LIESA, que organiza os desfiles no Rio, proíbe temas que falem de personagens ou temas estrangeiros. Qualquer enredo tem que ter ligação com o Brasil, ou seja, por aqui nunca teremos um enredo sobre Bill Gates como a da Unidos do Peruche em São Paulo. Com essa regra no desfile de  1989, o mesmo que me fez ir para Avenida, quem ganhou foi “Liberdade, Liberdade abra as asas sobre nós”, a G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense cantando o centenário da República. Através de sambas aprendi sobre a criação do mundo pela tradição Nagô, conheci Bydú Saião, soube que tentaram trazer camelos para o Brasil e tantas outras histórias.

Ouso dizer que os desfiles são um termômetro da sociedade. Em 2018, bem antes da eleição, a disputa foi entre “Meu Deus! Meu Deus! Está extinta a escravidão?” da G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti que fazia uma forte critica social. Falava de racismo e trazia como destaque um vampiro com faixa presidencial, referência ao então presidente Michel Temer. O desfile e o samba foram celebrados. As criticas sociais certeiras da Tuiuti foram derrotados por 0,1 pela Beija-Flor com o enredo sobre os 200 anos do livro Frankenstein. Calma, o desfile e o samba falam por alto sobre a solidão da criatura do livro, mas na prática a escola fez um desfile teatral contra “tudo isso que está aí”. Tinha tiroteio em sala de aula, policial morto, ratos no prédio da Petrobras. A Escola foi a última a desfilar na segunda-feira e protagonizou uma apoteose com o público invadindo a pista e cantando o samba protesto a plenos pulmões. Meses depois, nas eleições pelo país, ganhou o discurso do “contra tudo isso que está aí” e as bandeiras sociais ganharam a pecha de esquerdistas e malditas.

Ano passado a G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira ganhou cantando os esquecidos da nossa história, os problemas com a História oficial. Esse ano a G.R.E.S. Unidos da Tijuca vem com versos como: “A minha felicidade mora nesse lugar / Eu sou favela / O samba no compasso é mutirão de amor / Dignidade não é luxo, nem favor”. A G.R.E.S. Portela com: “Índio pede paz mas é de guerra / Nossa aldeia é sem partido ou facção // Não tem bispo, nem se curva a capitão”. A G.R.E.S. São Clemente: “Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu / E o país inteiro assim sambou / Caiu na fake news”. E a G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira com: “Favela, pega a visão / Não tem futuro sem partilha / Nem messias de arma na mão”.

O Reinado de Momo está chegando mesmo que o Bispo se recuse a entregar a chave da cidade ao monarca da folia. Ou nos versos de João Bosco em sua música “Plataforma”

Não põe corda no meu bloco
Nem vem com teu carro-chefe
Não dá ordem ao pessoal
Não traz lema nem divisa
Que a gente não precisa
Que organizem nosso carnaval
Não sou candidato a nada
Meu negócio é madrugada
Mas meu coração não se conforma
O meu peito é do contra
E por isso mete bronca
Neste samba plataforma
Por um bloco
Que derrube esse coreto
Por passistas à vontade
Que não dancem o minueto
Por um bloco
Sem bandeira ou fingimento
Que balance e bagunce
O desfile e o julgamento
Por um bloco que aumente
O movimento
Que sacuda e arrebente

Venha ouvir sambas enredo:

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