Coluna

Palavras de um mendigo

Semana passada, meia hora antes de sair de casa pra assistir à ópera Carmina Burana no Municipal, abri o Word e digitei palavras conforme elas iam surgindo. Comigo é quase sempre assim. As palavras se formam, eu as escrevo e quando o que eu tinha pra dizer foi dito elas param de vir.

Neste dia, escrevi 444 palavras. Uma cena. Um momento. Uma onda gravitacional. Gosto de pensar que é como arremessar uma pedra plana no lago e observar enquanto ela quica, quantas vezes ela achar que deve quicar, até finalmente afundar. Às vezes, dependendo da força e do ângulo, a pedra quica por mais tempo, às vezes, dura bem pouco, e, de vez em quando, arremesso tão longe que ela quica uma vez e faz um barulho “bblum”. Ainda que seja o caso, uma história foi contada e a quantidade de palavras se torna uma questão de estilo. É um conto? Um poema? Um romance? Uma composição musical?

Quem é que pode dizer quando deve acabar? Se uma narrativa é longa ou curta demais? Você pode ter seus argumentos, claro, e um estilo próprio ao dizer que uma história poderia ser esticada ou encurtada de acordo com suas expectativas, mas é bem provável que o autor tivesse ideias (e expectativas) divergentes no momento da escrita.

É um assunto sensível, eu sei, essa coisa de finalizar histórias… há quem diga que uma obra nunca está finalizada, mas aí pode ser que eu entre num campo filosófico e tergiverse, o que podemos deixar para uma próxima coluna. Isso sem falar nas obras que de fato não terminamos por n motivos e que ficam empilhadas nas gavetas virtuais da vida… mas, enfim. Em termos práticos, uma obra — literária, no caso — “acaba” quando ela vai pra gráfica. Ou no caso do meu humilde texto de 444 palavras no momento em que cliquei no botão azul “Publicar” do Facebook.

Autor brinca que, uma vez publicado, o texto, qualquer que seja, deixa de ser nosso. Agora é a interpretação do leitor que vai conduzir a opinião dele e isso é lindo. Ainda bem. Se um livro fosse lido exatamente da mesma forma por centenas de milhares de pessoas, que tédio seria um clube do livro sobre a obra, hein?

Estou falando isso tudo, porque considero cada comentário, cada resenha e cada feedback que recebo sobre o que escrevo. Acho importante. É um aprendizado. Seja como autora ou como pessoa. Acho que é o que torna minha experiência como autora completa, quando o leitor, ao absorver parte de mim enquanto lê minha história, me oferece em troca parte dele enquanto descreve o que sentiu e o que viu. É um momento de troca especial pra mim e me ensina empatia, argumentatividade e tolerância.

Portanto, ao ler um comentário sobre meu texto no Facebook de 444 palavras, refleti sobre o que estava sendo dito, principalmente por não concordar com a opinião do leitor de que, se eu tenho algo rico em mãos, não deveria trocar 500 páginas por 500 palavras.

É um tremendo elogio, na verdade, ouvir que um conto que escrevi tem potencial para um romance, porque sei que, para o leitor, isso significa mais espaço e mais desenvolvimento da história que ele já se interessou. Recebo até hoje comentários assim sobre meu conto Papel de sangue e muitos acham que deveria ser o prólogo de um romance. Eu entendo. De verdade. Se formos pensar friamente, qualquer trecho “bem recortado” pode se tornar ou fazer parte de uma história muito maior. Mas e quando a pedra plana já não tem mais força e fôlego para continuar quicando no lago?

É uma questão de escolha, de tesão, de se apaixonar e viver plenamente uma relação enquanto ela dura. Às vezes, ela dura um romance, às vezes um conto, e, de vez em quando, o tempo de um beijo. Não acho que dar tudo de mim em apenas um beijo seja desperdiçar saliva. Muito pelo contrário.

É como um mendigo uma vez disse pra mim: diálogo é que nem pistola carregada. Se você anda armado, derruba qualquer um, e nem precisa descarregar o pente inteiro. Basta uma única bala.

#Fui

*O texto de 444 palavras pra quem quiser ler (ou no Facebook):

Os olhos da garota trazem o brilho alerta e de incômodo com o qual já estou acostumado, mas desta vez não desvio porque algo em sua postura, peito e ombros abertos, queixo suavemente erguido e dentes travados, sugere um mal-estar que identifico como constrangimento. Afinal, ela não está com medo como todos os outros, embora seu corpo lhe diga para atentar ao menor sinal de movimento brusco da minha parte. Um rapaz lhe dirige a palavra e parece se aproximar dela bem devagar, como quem prestes a pedir um beijo, mas ela não desvia o olhar de mim, ainda com ar de quem sente vergonha de alguma coisa.
Os dois estão à porta de um desses apartamentos chiques de Ipanema, já passa de uma da manhã e, além da luz brilhando no canto do meu olho esquerdo, uma queimadura de nascença que, creia você ou não, me guia até hoje pelas ruas, há cinco postes de luz branca iluminando a Visconde de Pirajá só deste lado do quarteirão. Ainda assim, as ruas são perigosas, até mesmo para um sábado à noite, e a garota sabe disso. Ela continua alerta, enquanto vou seguindo o meu caminho, também sem desviar os olhos, e quando o rapaz a beija, finalmente, ela fecha os olhos por um segundo ao toque dos lábios, mas volta a abri-los, fulminantes e certeiros em minha direção, como se, ao longo desse um segundo, soubesse a quantidade de passos que eu teria dado.

A garota levanta um dos braços e acaricia a nuca do rapaz, raspando de leve os dedos pelo cabelo curto do jovem. Abraço meu cobertor, que envolve minha cabeça como um capuz, e pisco para espantar as lágrimas que ameaçam cobrir a minha luz-guia de nascença. Ao me ver a uma distância segura, a garota quebra o olhar e se entrega ao beijo totalmente. Eu olho para os meus pés descalços no chão de pedra portuguesa, para a rua deserta, para a grade de segurança das Lojas Americanas e, sem me ajeitar, deito-me no chão imundo.

Estou a cem metros da garota e seu rapaz, mas ela não me percebe mais. Voltou a esquecer-se de seus privilégios e de se sentir envergonhada por eles. Voltou a ignorar minha existência e a se desinteressar pelo pobre mendigo, uma vez que deixei de ser uma ameaça. Ela se despede do rapaz que se afasta sorrindo, assovia para o porteiro abrir a porta e, mesmo daqui, consigo sentir o vento gelado que seu corpo produz ao entrar no prédio e desaparecer por completo.

Antes de fechar os olhos e cobrir o meu rosto com o cobertor-capuz, concedo à lágrima suicida sua viagem merecida.

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4 thoughts on “Palavras de um mendigo
  1. Uma das coisas que pode levar o leitor a querer mais é um personagem bem escrito, que instiga a nossa imaginação a entrever pelas frestas do texto nuances e profundidade.

    Talvez toda pessoa boa escritora tenha muito mais a respeito de todo personagem que ela transfere para uma história e isso transborde do texto além de deixar sempre a possibilidade de desdobramentos 😉

    1. Acho que a beleza mora justamente na possibilidade infinita de desdobramentos, até mesmo quando o personagem principal de uma história morre, por exemplo… a quantidade de “ondas gravitacionais” que a tal morte pode causar, o efeito e as consequências disso… toda história é infinita.

  2. Creio que cada escritor, assim como cada pessoa que expõe sua arte, põe no papel, ou em qualquer outro meio, aquilo que sua mente conseguiu capturar sobre determinada historia, tenha ela um paragrafo, ou dezenas de paginas, o texto se expõe de uma forma que não podemos controlar, e pelo menos para mim, são raras as vezes em que volto a um dos meus e tenho vontade de reescrever algo, alguns ciclos se fecham junto com o ponto final na maioria dos casos.

    Dá primeira vez na qual li o texto, pelo facebook, admito que no começo pensei ser a visão de um apaixonado, ou coisa assim, mas conforme continuei me vieram a memoria varias imagens das vezes nas quais observei as pessoas na rua desejando poder tirar cada uma delas de lá, é estranho para mim pensar que um igual possa passar por tanta dor e sofrimento, e que luzes tão bonitas muitas vezes se apaguem se serem notadas.

    Talvez a ideia de “texto concluído” seja algo subjetivo, o que para mim pode ser o todo, para outrem pode ser um fragmento, suponho que essa seja uma das partes mais interessantes de se escrever algo, a ideia de que para algumas pessoas seu texto pode ser um mundo inteiro, já para outras apenas um fragmento de um universo.

    1. Como sempre me tocando com suas palavras e visão de mundo, Emilly! <3
      Concordo 100%. E às vezes o mundo inteiro está contido em um fragmento de um universo para algumas pessoas. =)

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