Coluna Livros

Vergonha ou Preconceito

Isto não é uma resenha do livro novo de Ian McEwan, Máquinas Como Eu (Companhia das Letras, trad. Jorio Dauster). É um desabafo contra mais um escritor que dá uma declaração infeliz por vergonha, esnobismo ou simplesmente desinformação.

Nas entrevistas para divulgar o livro, McEwan (Reparação, Na Praia, entre outros) tem feito questão de dizer que não considera este romance ficção científica, porque não tem gente voando pelo espaço a dez vezes a velocidade da luz com botas anti-gravidade. O livro dele examina os conflitos que surgem entre humanos e andróides quando a inteligência artificial se torna indistinguível de um ser humano. Mas não, não é ficção científica.

Como se nenhum escritor tivesse pensado nisso antes dele. Ele até menciona Frankenstein e o computador Hal de 2001: Uma Odisseia no Espaço como exemplos da ciência descontrolada, mas reforça que a obra dele examina o dilema humano da questão. Não, Philip K. Dick não devia estar pensando nisso quando escreveu Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas? (mais conhecido como Blade Runner). Nem o Brian Aldiss de Super-Toys Last All Summer Long, transformado por Spielberg em Inteligência Artificial. Ora, a pergunta “o que nos torna humanos?” é uma das questões primordiais da Ficção Científica.

Volta e meia isso acontece. Margaret Atwood (O Conto da Aia), ao tentar defender seu Oryx e Crake, disse numa entrevista que Ficção Científica era “lulas falantes no espaço”, e que o que ela escrevia era Ficção Especulativa (em inglês, ambas são abreviadas SF). Levou um tremendo passa-fora da mestra Ursula Le Guin, que depois de destruir a distinção feita por Atwood, disse entender o medo da colega de ser relegada pelos críticos literários “sérios” e preconceituosos a um gueto, um sub-gênero. E de fato, a primeira frase da crítica do New York Times a Oryx e Crake diz que “a ficção científica jamais será Literatura com ‘L’ maiúsculo.”

Defendendo o gênero: Ursula K. Le Guin (foto: Marian Wood Kolisch)

Atwood passou um bom tempo tentando se explicar, e se redimiu com um excelente livro de ensaios sobre um gênero que ela lia desde pequena, In Other Worlds: SF and the Human Imagination, em que analisa, entre outras, a obra de… Ursula Le Guin.

O Nobel de Literatura Sir Kazuo Ishiguro tentou se distanciar da fantasia quando publicou O Gigante Enterrado, e também levou um pito de Ursula Le Guin. E me desculpem, mas Não Me Abandone Jamais é muito Ficção Científica.

Bom, lamento informar, mas é tarde demais: Ian McEwan tem um longo verbete na Science Fiction Encyclopedia. Quanto ao livro em si, que sai hoje em inglês, as críticas lá fora têm sido excelentes, e vou ler com toda a boa vontade do mundo. É um triângulo amoroso entre um rapaz, a vizinha, e um ANDRÓIDE, numa HISTÓRIA ALTERNATIVA em que o Reino Unido perdeu a Guerra das Malvinas e Alan Turing, em vez de se matar, desenvolveu a INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL. Não sei, mas me parece Ficção Científica…

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