“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos …”
Charles Dickens
Assim começa “Um conto de duas cidades”, de Charles Dickens, que tem como ápice a Revolta da Bastilha durante a Revolução Francesa.
Somos leitores, então, quando algo fora das páginas acontece, é normal fazermos correlação com o que lemos. Por exemplo, quando o Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, disse no Twitter que deveria recolher uma HQ dos Vingadores que conta com um beijo entre dois personagens do mesmo gênero, pensamos em “Fahrenheit 451”
Então, vê agora por que os livros são tão odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. As pessoas acomodadas só querem rostos de cera, sem poros, sem pêlos, sem expressão.
Fahrenheit 451
Mas aí, no lugar de serem recolhidas, essas revistas foram compradas por leitores, que, como nós, repudiam a homofobia fantasiada de “bons costumes”. O que Crivella considera conteúdo impróprio, nós consideramos liberdade de expressão. Não quer ler ou não quer que seus filhos leiam? Não compre! Duas pessoas do mesmo gênero (nesse caso, ainda são personagens fictícios!) se beijando não ferem ninguém, não é crime. Homofobia é.
Mas o problema não se resolveu quando os leitores esgotaram a tiragem da HQ. Não! Ele escalou, porque o Prefeito, no lugar de resolver o CAOS em que a cidade do Rio de Janeiro se encontra sem segurança, saúde, fiscalização, educação e tantos outros problemas, resolveu fiscalizar a leitura alheia. Então aconteceu a “batida” da Secretaria de Ordem Pública para vistoriar os estandes da Bienal do Livro em busca de livros com cenas “eróticas ou homossexuais” e que não esteja lacrado e sinalizado como “conteúdo impróprio”. Um pouco mais de literatura para o Bispo- Prefeito.
A intolerância é inclinada a censurar, e a censura promove a ignorância dos argumentos dos outros e, portanto, a própria intolerância: um círculo rígido e cruel que é difícil de quebrar.
Primo Levi
Se você é leitor como nós, deve estar chocado. O ano não é 1964 , mas 2019.
Conteúdo homossexual quer dizer diversidade. Conteúdo erótico quer dizer escolha e liberdade consensual. Nenhum desses é impróprio, muito pelo contrário. Lá fora, é exemplo: a história teve o reconhecimento do prêmio da GLAAD, associação americana que monitora a representação LGBTI+ na mídia.
Conteúdo impróprio é o preconceito, a intolerância, a falta de respeito, a censura, a hipocrisia. Isso sem contar a homofobia, que além de imprópria é crime.
A prova de que o beijo é apenas um pretexto para a censura é a ameaça não só de recolher a obra, como de cassar a licença do evento como um todo. É a proibição de um evento que difunde a cultura, a educação. A justiça concedeu uma liminar ao evento proibindo a prefeitura de cassar a sua a licença.
Educação e instrução são prioridades, caros “governantes”. Pessoas com informação podem se proteger, têm clara noção do que querem fazer o que querem feito com o próprio corpo, são mais felizes e, claro, podem votar melhor. Por isso a vontade de censurar, né? Mas não vai rolar, não mais, nunca mais. Como disse a Ministra do Supremo Carmen Lúcia, em decisão de 2015, “cala a boca já morreu”.
Quando citamos Dickens aqui é exatamente para ilustrar nosso atual momento de acesso a informação, de poder amar sem medo, de seguir nossos sonhos (“Aquele foi o melhor dos tempos…”) e a atual hipocrisia em nome do poder e da falsa moral e bons costumes (“Foi o pior dos tempos …”).
Somos leitores e conhecemos clássicos, HQs, romances, terror e ela, a distopia. Vivemos uma atual distopia, mas somos os protagonistas desse embate e vamos ganhar. As editoras e os leitores mostraram há resistência. Em menos de 40 minutos a HQ que começou toda essa polêmica tinha esgotado na Bienal e ao longo do dia os livros com temática LGBTI+ continuaram sendo vendidos, agora com mais orgulho do que nunca.
Já que o pseudo-prefeito se interessa tanto por HQs, fechamos esse post com menção a uma… Leia essa, prefeito. Leia e reflita. Somos muitos e somos unidos.
“O povo não deve temer seu Estado. O Estado deve temer seu povo”
V de Vingança