Coluna

Deus ex machina dos leitores

Uma pergunta que eu me faço – mais vezes do que o considerado são pelo Ministério da Saúde – é “qual é o trabalho da ficção?” Eu trabalho com isso, vivo isso há muitos anos e continuo me fazendo essa pergunta. E o motivo pelo qual eu não consigo definir ou aceitar uma resposta é porque toda vez que chego à uma conclusão vem a sociedade e derruba minha tese.

A “tese”, digamos assim, que costuma estar no topo da resposta a essa pergunta é que ficção gera empatia, ficção ensina empatia, ficção te coloca numa situação que é impossível fugir da empatia. Depois que você passa tanto tempo lendo ficção, seja ela um romance, um terror, uma fantasia, uma comédia, que seja, uma coisa é certa: você viveu muitas vidas, teve muitos amigos, conviveu com muitas famílias. Você passou por toda a dor que muitos personagens viveram, você embarcou em Odisseias, presenciou escolhas de Sofia, amou muitos Romeus, confiou em muitos Iagos. É apenas natural que você aprenda, se a vida não te ensinou de outra forma, a se colocar na situação do outro.

Se você já teve ciúme ou dúvidas de traição no seu relacionamento, independentemente de estar certo ou não, você em algum nível consegue entender o que Bentinho passou, se já se apaixonou a ponto de perder o fôlego, sabe como se sentia Catherine e Headcliff, se já sentiu impulsos vingativos por qualquer que seja o motivo, simpatiza com a causa do Conde de Monte Cristo. Vou além. Se você já sofreu qualquer tipo de bullying na escola ou já foi oprimido, não vai conseguir condenar a Carrie facilmente, sem pelo menos um bom debate antes.

Empatia. Tá no topo da lista das respostas possíveis a essa inextinguível pergunta “Qual é o bendito trabalho da ficção?”. Não tem como fugir. E, no entanto, a nossa bolha social, justamente aqueles que sabemos que leem, que consomem ficção e histórias de todas as formas, tevê ou livro ou quadrinho, todo dia esquecem tudo o que aprenderam e praticam preconceitos, perjúrio, fazem mau uso da intolerância, são ávidos em suas interpretações e ignoram o quão emocionais e imaturos ainda somos. Sobretudo, e isso é o que mais me assombra, os leitores estão menosprezando a capacidade de resiliência e transformação do ser humano, que depende da experiência e do timing de cada um, e que são simplesmente as qualidades de praticamente TODOS os protagonistas de todas as histórias já contadas. Como que alguém pode se esquecer disso?

Como que alguém, que lê, que consome histórias, pode se esquecer que, dada à oportunidade e experiência, até vilões podem se transformar? Heróis, então… o que eles mais fazem é errar e fazer besteira e dar a volta por cima, e nós acompanhamos cada um desses erros com os batimentos cardíacos acelerados, porque sabemos como é cometer esses mesmos erros, porque já passamos por algo parecido ou amamos alguém que passou pelo mesmo.

Talvez como autora, e ter complexo de Deus tá no sangue, eu devesse ter “empatia” o suficiente pra entender por que os leitores são tão rápidos em julgar, quando é justamente o trabalho deles responder perguntas que autores fizeram em suas obras, mas isso já foi longe demais. Uma coisa é você cancelar um personagem fictício porque envelheceu mal e você já não acha mais romântico a Bela se apaixonar pela Fera numa espécie de síndrome do Estocolmo, outra completamente diferente é cancelar pessoas reais.

Eu não tenho religião então uso as palavras “perdão” e “condenação” com muita cautela, mas o que vejo hoje é um mar de leitores condenando e perdoando pessoas na vida real como se eles fossem a justiça divina Deus ex machina da história do mundo.

E isso é uma grande perda de tempo.

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One thought on “Deus ex machina dos leitores
  1. Acho que a ficção só ensina empatia se a pessoa busca histórias com personagens diferentes dela, se busca histórias que tiram da zona de conforto ou, pelo menos, apresentam visões inesperadas do mundo e das pessoas.

    Uma grande parte da ficção é criada para ser facilmente usada como o contrário da empatia, com protagonistas que nos permitem sonhar que somos superiores.

    Como a ficção que produz empatia é emocionalmente mais difícil, também é menos procurada, né?

    Como exemplo me ocorrem dois filmes bem diferentes que ajudam a ter empatia com trolls (apesar disso não ser o tema das histórias): ponte para Terabitia e Deixa ela entrar. Ambos mostram que o troll repassa o abuso moral que sofre.

    Acho que toda ficção mais maniqueísta acaba não sendo muito útil para gerar empatia…

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