Encantada com “Garota Exemplar” corri para ler “Lugares Escuros” quando descobri que o livro havia sido adaptado para o cinema. Sempre ouvi muitos elogios à escrita de Gillian Flynn, então percebi que seria uma tarefa fácil ler o livro em pouco tempo. Não, não foi. Não que eu não tenha gostado do livro, muito pelo contrário, achei a história muito bem construída assim como os personagens. A dificuldade que encontrei foi pelo peso da história, muito sombria, cheia de lembranças tristes que precisavam ser contadas para poder desvendar esse novo mistério da autora. Mesmo assim terminei o livro em 4 dias e no dia seguinte estava pronta para ver sua adaptação cinematográfica.
Algumas pessoas torcem o nariz para produções baseadas em livros que gostaram muito. Eu não, gosto de ver personagens ganharem vida e cenários tornarem-se reais. Também acho interessante “ver” uma história que gostei tanto através de outros olhos, por isso não sou radical em relação a adaptações. Claro que quando destroem uma boa história me irrito muito. Felizmente esse não é o caso de Lugares Escuros (Dark Places, EUA, 2015). Essa é uma boa adaptação, quase fiel ao livro, que guarda sua essência e faz algumas modificações aqui e ali para poder caber em 113 minutos de filme. Algumas delas me incomodaram, outras fazem sentido, mas todas tornam coerente a história que o diretor Gilles Paquet-Brenner enxergou no livro de Flynn e levou para a tela do cinema.
Eu sei que colocando dessa forma parece que o diretor criou uma história diferente, não, não é isso o que acontece. Ele é bem fiel ao livro e a detalhes, mas ainda assim distante do perfeccionismo de seu colega David Fincher, que fez um trabalho primoroso com sua adaptação de “Garota Exemplar”. Comparação que surge devido ao curto espaço de tempo entre um filme e outro, principalmente por conta do sucesso que o filme de Fincher teve. Logo todos os olhos se voltam a essa nova adaptação de mais um livro de Flynn e todos eles querem outro trabalho primoroso.
Bom, “Lugares Escuros” é uma história bem menos glamorosa que “Garota Exemplar” e esse é um detalhe muito importante aqui. O drama de Libby Day e sua família é muito realista, cheio de fatos muito próximos ao cotidiano de grande parte da humanidade. Ela foi criada por uma mãe pobre, dona de uma fazenda em decadência, em pleno anos 1980. Ela, a mais nova de quatro irmãos, talvez seja a que menos havia sentido o que era viver de dinheiro contado, roupas usadas e a boa vontade alheia. Até o dia em que Libby testemunha parte de sua família – mãe e duas irmãs – serem mortas, quando ela era pequena. Amedrontada e confusa, Libby tem certeza que foi seu irmão quem cometeu o assassinato. Seu irmão vai preso aos 16 anos (no livro, aos 15) e ela passa sua vida a ser sustentada por seu drama, através de pessoas que doam dinheiro pra pequena Libby Day, única sobrevivente do Massacre de Kinnakee em 1985.
Uma das mudanças do filme em relação ao livro que me incomodou foi Libby não ser ruiva (nem Libby, nem a mãe e nem o irmão), um traço forte e muito característico da personagem, o que entendi como a lembrança mais presente em sua vida sobre sua família e tudo o que havia acontecido. Libby tem lindos e grandes olhos azuis, assim como sua mãe e assim como seu irmão, mas olhos iguais não tem a mesma força que cabelos ruivos. Mas essa é a única mudança que achei que poderia ter permanecido no filme para aumentar a carga emocional da personagem.
A Libby do filme tem 38 anos (assim como a atriz Charlize Theron, quem a interpreta), não é baixa, mas é completamente perdida e indefesa como a personagem do livro. Theron convence com muita facilidade como a raivosa e depressiva Libby, seu medo de se tornar adulta, seu modo furtivo e desconfiado caracteriza Libby com perfeição. Quando ela conhece Lyle e o Kill Club vemos o livro ganhar vida. Porém o Lyle de Nicholas Hoult é independente e bem mais decidido que o do livro. Entendi essa modificação como um “upgrade” do personagem para 2015. O Lyle de 2010 seria mesmo um nerd vivendo no porão da mãe e presidente de um clube de pessoas que gostam de estudar antigos assassinatos famosos. O Lyle de 2015 é um nerd hipster, dono de uma lavanderia, muito bem resolvido e sem nenhum problema em fazer parte de um grupo desse estilo.
O livro de Flynn é detalhista, contado sob o ponto de vista de três personagens principais, para poder sustentar o mistério sobre quem realmente matou a família Day, ao mesmo tempo que leva o leitor por um passeio pela escuridão de Libby, um personagem quase desprezível no início, que você aprende a gostar e torcer por ela no final. Sem redenção, sem falso moralismo, sem lições de vida e isso foi o que mais me conquistou no livro.
Porém para transmitir toda a complexidade de Libby, sua mãe Patty Day (Christina Hendricks) e seu irmão Ben (o ótimo Tye Sheridan na adolescência e Corey Stoll na idade adulta) no filme, seriam necessários um pouco mais de 113 minutos. Assim, Gilles Paquet-Brenner decidiu pelo caminho mais fácil, cortar as arestas, os dramas pessoais e apenas contar a história, que já é bem rica e interessante por si só. A dúvida sobre quem matou a família Day, quais os possíveis suspeitos, qual o papel real de Ben na trama e o dos outros personagens que surgem para Libby durante o filme, com certeza já são elementos suficientes para um bom suspense.
Tenho certeza absoluta que não deve ter sido fácil a tarefa de adaptar “Lugares Escuros” para o cinema, que não é possível ser completamente fiel a nenhuma história sem comprometer detalhes. Mas senti falta de detalhes de Ben no filme, um personagem tão rico e muito bem estruturado, um genuíno adolescente dividido entre ser um bom filho, impressionar aos amigos, enquanto se revolta em relação a sua condição social. No filme o Ben adolescente não parece nenhum um pouco inseguro ou medroso, o que, pra mim, comprometeu o personagem. O Ben adulto é muito parecido com o do livro, mas parece destacado do adolescente, o que ele não é de forma alguma, sua doçura sempre existiu.
Não há nenhuma dúvida de que “Lugares Escuros” é um bom filme, baseado na trama central do livro, dando ênfase ao ponto de vista de Libby Day, e seu principal ponto positivo é o de mostrar o amadurecimento de Libby durante o processo, mesmo sem se aprofundar na personagem. Porém, assim como os membros do Kill Club lhe explicam que ela tem apenas 10 dias para conseguir alguma nova prova sobre o caso, para ajudar (ou não) seu irmão, o filme se apressa para contar toda a história. Para quem leu o livro, ele passa impressão de ser corrido e que alguns pontos aqui e ali poderiam ter entrado. Talvez seja mesmo muito cedo para uma nova adaptação de um outro romance de Flynn, mas em um mundo em que oportunidades não devem ser perdidas, “Lugares Escuros” merece ser visto por ser uma boa produção sobre uma excelente história.