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Realmente. Estou exausto. Desde o segundo semestre de 2018 eu ando cansado, me cansando a cada passo, a cada conversa, festa, série, transa, sonho.
Fiz meu café hoje — sem coluna, não consigo escrever. Sentei na frente da TV e, mecanicamente, parei em algum jornal diário das 10 da manhã, ao vivo. As apresentadoras falavam das mesmas coisas, da reforma da previdência e da criança da família real que nasceu e das gaivotas que resolveram parar na frente de uma câmera de monitoramento de trânsito, em Londres. Os comentários, enquanto eu bebia meu café, foram:
— Aqui no Brasil, no Rio, tem sempre… urubu, pombo… aí é mais sofisticado, elegante…
— É, olha elas, gaivotas finíssimas…
Foi algo assim. Um comentário sobre a elegância das gaivotas londrinas em comparação à deselegância dos urubus. Senhoras… Os urubus são aves do fim-do-mundo, são animais fantásticos que se alimentam das carnes em estado de putrefação; são pássaros que comem a morte. Se todos os mortos voltassem, eu teria urubus ao meu redor, voando comigo pelo vale dos desesperados. E o que a gente diz pro Deus da Morte?
Hoje não.
Cansar vem do latim, que vem do grego, que vem do mar.
O Houaiss informa* que a etimologia encontra-se em kámptō, do sentido náutico, rodear, andar à roda, dobrar. Cansado do mesmo sentido.
Socorro , Cássia Eller, que eu não estou sentindo nada.
Cansado de andar em círculos, de dobrar os cabos e cair no mesmo lugar, cansado e exausto dessa repetição mecânica do tempo dos relógios que agora se disfarçam de visores e aplicativos que corrigem nossos cérebros.
Dobra.
No intervalo do jornal, uma criança branca e alourada (e louro vem também de uma tradição grega e romana, uma coroa de folhas de louro para os vencedores de torneios; papagaio — uma ave nativa do “novo mundo”, da região amazônica, com terríveis garras e bicos), essa criança anda pela sala com um smartfone e pergunta para a IA se máquinas têm coração. A resposta da IA (em uma voz feminina sem expressão) é que máquinas são objetos frios que servem para repetição mecânica de uma mesma função e, portanto, não têm coração (Metropolis, Tempos Modernos, Benjamin, Mary Shelley). A criança olha para a sala, na qual uma sorridente família nuclear bebe café em xícaras com formato de coração, coloca o celular ao lado da máquina de expresso e fala: sabe de nada, e vai para a família. Trata-se, obviamente, de uma propaganda de uma cafeteira dessas de cápsulas.
Fiquei com isso, fiquei com esse problema. O coração é um músculo que bombeia sangue, mecanicamente, durante toda uma experiência de vida; a ideia de corpo-máquina é antiga; o menino pergunta pra uma máquina se máquinas têm coração. Exterminador do futuro. Black Mirror. “As primeiras máquinas da Revolução Industrial foram corpos”**. Nós somos as máquinas e as máquinas. IA tendo que ser desativada; IAs conversando em códigos. Chips que fazem os corações funcionarem — próteses e Donna Haraway e somos todos ciborgues.
Mas os ciborgues somos nós, os restos e resíduos anti-humanos, as assemblagens e acoplagens e agenciamentos; somos os urubus mecânicos e cibernéticos, com garras e bicos que tivemos que criar para matar essa infantilidade estúpida que pergunta tudo pra um smartfone ocupado; que assola e contamina como um vírus apocalíptico o cérebro das pessoas.
Somos os pássaros cansados que voam em círculos sobre e sob os mares de uma terra plana, acoplando em nossos corpos os vestígios e ruínas do passado, voando com esse peso e obstruindo as visões digitais das câmeras de vigilância e controle de um futuro-passado que não rejuvenesceu.
Somos nós, urubus versus zombies; urubus e gaivotas e papagaios em uma profana orgia de fluídos, metal, penas e café.
Estou cansado, mas ainda tenho que dizer
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*”lat. campsō,as,āvi,ātum,āre, da linguagem náutica, ‘rodear, andar à roda, dobrar (um cabo, uma ponta nomar)’; Corominas, s.v. cansar do mesmo sentido de ‘fatigar (-se)’ do port., partindo do sentido náutico de’dobrar (um cabo) navegando’, chega ao significado moderno, passando pela ideia de ‘cessar (de fazeralgo)’; Nasc adota esta mesma explicação, e ainda remonta campsāre ao gr. kámptō no sentido de ‘dobrar’; ver cans-; f.hist. sXIII canssar, sXIV cansar, sXIV cãssar, 1707 cançarse”
**Paulo B. Preciado, https://www20.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml
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