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Os olhos de um monstro

Os olhos de um monstro

 

“Conto de terror,

mas o rosto é um conto de terror.”

Era um monstro que espreitava durante as últimas horas da madrugada. Os olhos imensos, abertos ao lado das cortinas que oscilavam imperceptivelmente com o ar suave do ar-condicionado.

Os olhos eram brancos, como tomados por uma névoa espessa e opaca. Finíssimas veias verdes se ramificavam nas bordas. Eu abria os meus olhos, escapando de algum pesadelo, para me deparar com aquele par de olhos alienígenas, parados – e então eu era tomado por forças que não sei explicar. Não conseguia me mover nem olhar para outro lugar. Aquela brancura leitosa me prendia, me sugava para o seu interior lácteo, eu sentia os fios da minha existência saírem como pequenos fantasmas na direção daqueles olhos… e ele os recebia com lascívia e escárnio, como um vampiro…

Eu abria a boca para tentar falar, mas não havia som em mim. Algodões abafavam meus tímpanos e eu ouvia apenas o sangue dentro do meu corpo e uma respiração que não era minha, grossa e meio mugida.

Havia algo de pegajoso naqueles olhos. Eu tinha vontade de tocá-los para certificar o que eu imaginava sobre a consistência aquosa e viscosa das membranas; eu tinha vontade de lamber aqueles olhos – essa vontade me causava nojo, enjoo e excitação. Mas meu estômago estava tão pesado sobre a cama e tudo que eu podia mexer eram os meus próprios olhos.

Eu dormia com a luz acesa para evitar esse acidente, para evitar essa surpresa – mas acordava de madrugada, a luz apagada e esse monstro lá.

Era um monstro. O corpo, feito apenas da escuridão sólida da noite, se alastrava pela parede como um parasita. Eu sentia o calor frio que emanava dele, uma temperatura que tomava o quarto para além do ar-condicionado, para além de tudo que havia ali de reconhecível. Eu suava – o suor escorrendo pela testa, têmporas, ouvidos, narinas, lábios, pescoço, encharcando a cama.

Em algumas noites de verão, principalmente quando faltava luz no meio da madrugada, cheguei a me urinar na cama. E não conseguia levantar – permanecia ali, prostrado no colchão que lentamente engolia meu corpo enquanto aquele par de olhos de pântanos brancos me devorava.

Esse processo de ser consumido.

Tudo que eu tinha, meu celular, meus livros, o computador e a internet não podiam fazer nada, não me ajudavam em nada, suas existências eram patéticas e inúteis ao meu redor – as pilhas de livros, os aparelhos plugados nas tomadas, a pequena montanha de roupa usada e os tênis largados com as meias dentro… não serviam para nada nessas noites de intenso ataque.

Tudo que eu era, no entanto, estava disponível para aquele ser no canto do quarto, para aqueles olhos que não possuíam íris mas focavam e pesavam sobre mim. Em algum momento eu apagava, como se os interruptores do meu cérebro fossem desligados – meu campo de visão era tomado por um branco nojento, como água suja e gordurosa sendo regurgitada do ralo de volta para a pia, e eu apagava.

Os dias que seguiam às noites eram insuportáveis: uma leve dor de cabeça se instalava no fundo dos meus olhos, pulsando lenta o dia todo como um aviso intermitente; me arrastava pelos dias, exausto, as pernas pesadas, a compreensão do mundo radicalmente afetada – qual era o número do ônibus? Quantos andares? Qual língua? Não, não lembro de você, desculpe, quantos pães?, quantas horas?, 30 minutos?, qual a senha do cartão?, a senha do celular, a senha do computador, como minha digital não confere, não quero refazer minha biometria…

Chegava em casa exausto.

Quando ainda havia alguma energia, preparava algo pra comer – eu precisava comer pra dormir; mas, na maioria das vezes, pedia alguma coisa e era arrancado do meu torpor pelo interfone gritando pelo apartamento.

Comia da embalagem mesmo e me jogava na cama ainda úmida.

O cheiro no meu quarto é de suor e ranço – não lembro a última vez que troquei esses lençóis. As pesadas cortinas fechadas e unidas por um pedaço de silver tape. Não quero acordar cedo, durmo mal e o sol explode no meu quarto de manhã cedo. Quero dormir mais algumas horas.

Aperto o botão do ar-condicionado.

A luz já está acesa e já estou jogado na cama, tentando olhar para o outro lado, o lado oposto ao qual o monstro surge, o lado claro da lua. Mas meu corpo todo deseja olhar para lá.

Talvez ele não venha hoje.

Há noites nas quais ele não vem.

 

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