Coluna

A carne da casa

Não havia mais nada que justificasse aquela casa, aqueles quartos e aquelas paredes ainda de pé; os encanamentos enferrujados apareciam aqui e ali como fraturas expostas em carnes ressecadas. Toda demolição era, também, um processo de soterramento. As memórias, os ossos, as pequenas lembranças que assombravam as paredes e as crianças e cavalos que haviam morrido e “o que andava ali, não andava só.”
O arrastar dos dentes, o ranger dos dentes nos espelhos enquanto eu desfazia minhas tranças e no andar debaixo eles e seus cavalos destruíam a sala, os armários e os abajures de mosaico de vidros coloridos — durante a noite projetavam obscenas sombras coloridas nas paredes cobertas por “papel amarelo”.
A escovação compulsiva e os fios eletrizados grudados na escova de pelo-de-cavalo; o meu cabelo perdendo toda a individualidade ondulada e caindo, caindo e sempre caindo, os fios grudando no branco dos meus olhos e as lágrimas que não caíam nunca e desejavam e deixavam, por sua vez, a desejar — essas águas de sal caíam na bacia de louça na penteadeira e o cabelo caía e formava um grosso amontoado circular ao meu redor.
O tríptico de espelhos refletia qualquer coisa na penumbra alaranjada do quarto onde eu estava, naquele quarto que haveria de ser destruído, onde eu estava e, pela última vez, aquele desejo esvaziado no terceiro olho do quarto do espelho onde eu estava.
O sol baixava e dramas cor-de-fogo de brasa explodiam pelas frestas das persianas de madeira e eu ainda sentado, eu não quis ter esse filho nem esse pai e agora eles destroem a sala e agora ouço os azulejos da cozinha racharem, fissuras através das quais um demônio branco tenta escapar e a água enferrujada, cor de tijolo, escorre como um jorro da boca de metal carcomido como lábios ressecados e transborda para o chão de pastilhas e avança como uma lava pela casa. Inunda. Preenche cada canto, cada espaço vazio e cheio, forçando tudo a flutuar, arrancando do chão o peso, a água férrea jorrando e jorrando sem fim.
Sei, sinto que eles morreram afogados, narinas e bocas preenchidas por essa lava-água-ferro; sei que seus corpos flutuam pela casa junto com os móveis, roupas, ferros-de-passar, bichos de pelúcia e pessoas de porcelana.
Ouço a água chegar na escada e no corredor. Finalmente largo a escova. Tudo pára. Tudo ferve laranja abrasivo. Atravesso o corredor para o banheiro outrora verde e agora brasas no único olho de um monstro.

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A casa se retorcia e vazava. Coisas quebravam, vidros e madeiras, e metais rangiam como dentes, A casa estava morrendo e mastigava tudo em seus interior com os dentes que tinha. O chão rachava e as janelas explodiam.
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Deitei na banheira. Era como um barco em constante naufrágio. Meu cabelo se misturou com a água. Fechei os olhos por um instante e tudo ficou cor de barro-lama-lava. Um dos dentes daquela casa desceu lento e com força para dentro da minha carne.
Aquele monstro agonizou uma última vez e talvez,

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