Pandemia, quarentena, uma realidade bem próxima a dos livros do Stephen King e por conta disso a coluna especial sobre ele ficou um tempo adormecida. Mas como no dia 21 de setembro celebramos o aniversário do nosso Mestre do Terror favorito, era preciso um evento especial para trazer a coluna de volta. Como enterrar no Cemitério Maldito nunca é uma boa ideia, a solução foi fazer um evento de um mês falando sobre seu mais novo lançamento, o livro Com Sangue (If it Bleeds), que vai ser lançado no Brasil na próxima semana, pela editora Suma de Letras e com tradução da maravilhosa da Regiane Winarski.
O livro traz quatro novas novelas do escritor (histórias curtas que são maiores do que um conto) e hoje vamos falar sobre a primeira, O telefone do Sr. Harrigan.
Minha avó costumava dizer que a gente não deve ligar pra alguém ao menos que queira que ele responda.
Um fato curioso sobre o King é que ele adora tecnologias, computadores, foi um mega entusiasta dos e-readers quando eles foram lançados, adora audiolivros e é super ativo no Twitter. Mas ele odeia celulares, tanto que demorou muito anos para ter um. Ele também escreveu um livro sobre pessoas que viravam zumbis através do sinal do celular. O nome do livro? “Celular”. Não é um dos seus melhores trabalhos, mas ele consegue fazer sua crítica com bastante acidez.
A novela que abre o livro é sobre um celular, mais especificamente, o celular que o jovem Craig dá de presente para o Sr. Harrigan, um iPhone da primeira geração, lá em 2008. Craig perdeu a mãe muito cedo, mora sozinho com o pai em Harlow, Maine (sim, a mesma cidade de Sob a Redoma) e tem uma vida bem simples e tranquila. Quando ele tinha nove anos, em 2004, lia passagens da Bíblia durante o culto dominical na igreja de sua cidade. Impressionado com a desenvoltura do garoto, o misterioso e muito rico, Sr. Harrigans o contrata para ler livros para ele, todos os dias da semana, depois da escola. O pai de Craig concorda e dali nasce uma amizade.
Durante quatro anos, o Sr. Harrigan envia cartões para Craig com uma raspadinha dentro. Sempre durante as datas festivas, Páscoa, Natal e até Valentine’s Day. No Natal de 2007, Craig ganhou seu primeiro celular do pai, um iPhone. Em janeiro do ano seguinte, Craig recebeu um cartão de Valetine’s Day do Sr. Harrigan e dessa vez ganhou três mil dólares na raspadinha. Em agradecimento, o menino decide dar um iPhone de presente pro seu rabugento amigo e, mesmo que a contragosto, o Sr. Harrigan acaba ficando com o aparelho, ao descobrir que ele poderia ter informações quase que imediatas em seu novo telefone. Apesar de não demonstrar, o Sr. Harrigan gostava muito do jovem Craig e os dois acabam cultivando uma amizade bem sólida, que permanece forte mesmo depois da morte.
Essa é uma história simples, contada toda do ponto de vista de Craig na primeira pessoa, que se torna um conto sobre crescer em uma cidade pequena, sobre perdas e sobre amizade. O celular dessa vez não é o vilão e sim um instrumento de conforto para Craig. É interessante que King tenha decidido situar sua história no inicio dos anos 2000, quando o futuro parecia ser muito mais interessante do que é agora e quando as tecnologias evoluíam menos rápido, e quando era possível um menino de 9 anos comprar um iPhone com o dinheiro ganho em uma raspadinha.
Não há nada de especial em O telefone do Sr. Harrigan, mas o tom de inocência de Craig e toda a nostalgia em que a história é envolvida, mostra porque Stephen King é um dos grandes contadores de história do nosso tempo. Claro que há elementos de terror ali, claro que há um mistério que nos faz querer chegar ao fim e descobrir o que leva aos acontecimentos no decorrer da história. Mas também há muito do King antigo, o que sabe transformar objetos corriqueiros do nosso dia a dia em algo misterioso e fascinante. Claro que sempre com pitadas de crítica social, afinal essa é uma história do King de agora.