No filme Hannah Arendt (2012), de Margarethe Von Trotta, a filósofa alemã discorre sobre a banalidade do mal ao falar sobre o julgamento de Adolf Eichmann. Ele não se sentia culpado por todas as atrocidades que cometera durante o período da Segunda Guerra Mundial, em que atuou como executor de ordens do Terceiro Reich. Para Arendt, esse sentimento de desapego, já que Eichmann se defendia explicando que apenas seguiu ordens, de não conseguir enxergar o problema por trás de seus atos, de não sentir culpa, leva à banalidade do mal, o maior mal do mundo.
No documentário Pastor Cláudio (2017), dirigido, escrito e produzido por Beth Formaggini, vemos Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS e atual pastor evangélico em Vitória, agir como Eichmann, pela frieza e calma com que conta todos os horrores de que participou durante a ditadura militar no Brasil. Guerra foi responsável pela execução de nove presos políticos e auxiliou na incineração de cadáveres de muitos outros. A falta de pudor do ex-delegado para contar cada um dos casos e tudo o que presenciou é de revirar o estômago. Entrevistado por Eduardo Passos, psicólogo e militante dos Direitos Humanos, Cláudio Guerra é sobreposto por imagens projetadas que mostram nomes e fotos de presos políticos que foram mortos durante o período. O ex-delegado olha para as fotos e nomes apenas relatando tudo o que presenciou com uma naturalidade revoltante.
Logo no início do filme há uma cartela que explica que Guerra fez questão de voltar e pegar sua Bíblia antes de começar a gravar o documentário. Assim ele passa todo o tempo em cena, sentado, sereno e com a Bíblia em suas mãos. Como se aquele artifício o isentasse de qualquer mal que provocou no passado. Uma isenção que ele mesmo parece ter se autodenominado, ao explicar que já tem um livro publicado contando tudo o que fez. Logo, contar, mais uma vez, para as câmeras de Formaggini é uma forma de confissão que o exime de vez do passado.
No filme Silêncio (2016), de Martin Scorsese, os padres jesuítas ensinam aos japoneses, que desejam ser cristãos, que através da confissão dos pecados tudo será perdoado aos olhos de Deus. Algum tempo depois, um dos religiosos é preso e o homem que o entregou vai até ele para se confessar, como uma forma de expurgar o pecado cometido e manter sua alma limpa. Claramente esse é o pensamento de Guerra, que parece acreditar que sua alma está “salva”, já que ele confessou seus pecados e se tornou um pastor evangélico. Ele não fala sobre isso, mas sua atitude perante as perguntas de Passos deixa bem claro.
Uma outra grande questão do documentário de Beth Formaggini é observar que o Brasil em que vivemos hoje, afundado em uma realidade corrupta e completamente polarizado, tem raízes naquele período, ao escutarmos Guerra recitar nomes de coronéis e outros grandes que comandavam o país, mas se conter ao falar sobre as grandes empresas que patrocinaram toda a carnificina. Até o pastor, do alto de sua aura de recém bom-moço, reabilitado pela força da religião, sabe que com os poderosos não se brinca, já que ele afirma que quem incomodava as oligarquias, morria.
Pelos que clamam que “bom era o tempo da ditadura”, que apenas quem “merecia” foi torturado e morto, o impactante e necessário documentário Pastor Cláudio deve ser visto e debatido. Ele é uma aula de história em forma bem crua, uma história que deve ser relembrada o tempo todo, para que esse horror não se repita.