Era uma vez uma rede de livrarias que se reposicionou com o conceito de Mega Store, uma livraria que vendia mais do que livros, com café, onde podia-se encontrar CDs e jogos. Era uma vez uma rede de livrarias reconhecida por seu catalogo completo, seu sistema online era referencia até mesmo para as concorrentes. Juntas essas duas redes dominaram o mercado enquanto as pequenas livrarias foram fechando, com algumas bravas exceções. As duas redes foram crescendo, as editoras foram incentivando suas políticas de descontos e de pagamentos e assim elas tornaram-se to big to fail, ou seja, não importa quantos absurdos tenham feito o mercado teria que salva-las para que não fosse dizimado.
Para os amantes de livros e livrarias essa poderia ser apenas uma pequena história de horror bibliófila mas, na realidade, é o que está acontecendo com o mercado nacional de livros. A Livraria Cultura e a Saraiva, que juntas concentram 40% do mercado de livros nacional, entraram em recuperação judicial (aqui). As dividas com as editoras, todas elas, são milionárias (matéria do estadão). Em um pais que pouco lê as duas principais referencias do mercado estão fechando lojas, não recebem mais lançamentos e agravam ainda mais a crise que acomete o Brasil e o mundo das letras. A estrada que levou a essa tragédia anunciada foi pavimentada por muitos e agravada pelo medo da chegada da Amazon no Brasil.
Saraiva se construiu emulando o modelo das grandes livrarias americanas como a Barnes & Nobles, ou seja, grandes lojas onde se podia comprar bem mais que livros e onde os atendentes não eram livreiros e sim vendedores. Qualquer pergunta sobre livros feita dentro de uma loja da Saraiva te levava, invariavelmente, a um dos computadores de consulta espalhados pela loja. Ela foi crescendo, comprando concorrentes com a aquiescência do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), órgão do governo que é responsável, entre outras coisas, de que não existam monopólios em nenhuma área. A Saraiva também foi agraciada por repetidos empréstimos do BNDES desde o começo desde século (aqui, aqui, aqui e aqui). Só para esclarecer dinheiro do BNDES é dinheiro meu, seu, nosso que o governo empresta para empresas com juros bem camaradas para ajudar no desenvolvimento das empresas e assim contribuir para o desenvolvimento social da nação.
A Cultura fez seu nome e sua expansão baseada em um catálogo fantástico e um sistema de catalogação dos livros em seu site de dar inveja as concorrentes. Na livraria física, com bons livreiros trabalhando, ela dava um atendimento de pequena livraria em um ambiente grandioso e com um estoque de títulos que levava muita gente a dizer “Se não tiver lá, não tem em lugar algum”. Em uma era onde compras na internet ainda engatinhavam em terras tupiniquins o site da Cultura te proporcionava fazer compra até de livros importados que eles não possuíam nas lojas. A rede de livrarias cresceu condizente com sua fama, as lojas se espalharam pelo Brasil com projetos cada vez mais ousados e espalhafatosos, vide Livraria Cultura no Centro do Rio. Ela também recebeu bons empréstimos do BNDES que garantiram a continuidade de seu crescimento.
O mercado de livros funcionava, desde 1996, no sistema de consignação, ou seja, as editoras deixavam os livros com as livrarias para serem vendidos com a previsão de receber o que foi vendido em uma data acordada. O sistema coloca o peso dos gastos nas editoras e, ao longo dos anos, as livrarias foram alargando os prazos de pagamento levando a essa quebra do mercado. O sistema de consignação não é de todo ruim, mas foi criado sem um sistema de regras definidas e depois de pouco mais de duas décadas destruiu o mercado que queria salvar (debate sobre a consignação). Nesse final de ano, com as dívidas só crescendo as editoras deixaram de confiar que receberiam de Saraiva e Cultura e chegamos onde estamos.
As dívidas existiam e eram administradas pelas livrarias, editoras e governo. Não era um mundo ideal, longe disso, mas era o possível no mercado pouco leitor que temos. A crise nas grandes livrarias americanas começou a despontar no horizonte com a chegada e fortalecimento da Amazon. As venda online começaram a crescer, movidas a descontos e comodidade, e a sombra da chegada da gigante americana por aqui começou a preocupar. Ao invés de tentar tirar lições do que aconteceu nos EUA as duas grandes redes nacionais de livrarias primeiro, como crianças pirracentas, tentaram impedir/negar a chegada do progresso, depois, como fato consumado (chegada da amazon), entraram em pânico.
Desespero nunca é um bom conselheiro e as duas gigantes passaram a meter os pés pelas mãos. Com dívidas com as editoras as duas receberam novos aportes do BNDES e, ao invés de pagarem seus credores, foram as compras e aos investimentos absurdos. A Cultura comprou a operação da FNAC no Brasil e a Estante Virtual, mais popular sistema que agrega sebos, e a Saraiva, bem, o que a Saraiva fez com o dinheiro? Tentaram lutar contra um gigante usando as mesmas armas em uma economia que começava seu declínio rumo a enorme recessão que vivemos há alguns anos. As dívidas foram crescendo, as editoras pararam de ter confiança de que, em algum momento, veriam a cor do dinheiro e chegamos aqui com as duas redes em recuperação judicial, as editoras tentando encontrar formas de levar seus livros a leitores de qualquer forma possível.
O problema para as editoras não está só em não receber os milhões que Saraiva e Cultura devem, está, principalmente, em descobrir como sobreviver daqui para frente. Como sobreviver com um mercado que encolheu, da noite para o dia, 40%? Não há respostas até o momento. O encolhimento do mercado tem sérias consequências, as mais imediatas são as demissões nas editoras, as que demoram um pouco mais para serem percebidas são danosas para um país que pouco lê: a diminuição de títulos. Com o encolhimento do mercado menos títulos serão editados e a prioridade será de quem vende, nada de apostas, de novos autores, de pequenos livros que ganharão leitores ao longo dos meses. É a diminuição do nosso horizonte literário.
O cenário não é nada bom, ainda mais para nós aqui que acreditamos na famosa frase de Monteiro Lobato de que “um país de faz com homens e livros”. Que país seremos com menos livrarias, que são bem mais do que apenas uma loja que vende livros, com menos títulos lançados, com o leitor tendo dificuldade de conseguir o livro que quer porque não tem onde comprar? Nós aqui da Redação continuaremos escrevendo sobre livros os mais variados possíveis, continuaremos comprando livros, dando livros de presente, indicando livro para todos os amigos, enfim, fazendo a nossa parte para tentar salvar o mercado editorial.