Filme

Cemitério Maldito (filme – 2019)

Uma das características que mais me agrada nas histórias contadas por Stephen King é o fator humano ser mais assustador do que o sobrenatural. No livro, Cemitério Maldito, toda a discussão sobre a morte é muito mais assustadora do que demônios e mortos que voltam a vida. O quão devastador pode ser a perda de uma pessoa amada, provando que o grande “vilão” dessa história não é o Wendigo ou os caminhões que cruzam a estrada em alta velocidade, mas sim a morte.

Esse é o ponto que a nova adaptação do livro para o cinema perde, se transformando em um filme de terror com escolhas fáceis e preguiçosas, resultando em uma produção inspirada na história original, que tem como resultado final um filme esquecível e quase medíocre. Desde seu trailer, que já entregava a primeira grande mudança na história, que a sensação que ficou é que os novos diretores escolheram o caminho mais seguro como forma de agradar a um público maior. Engraçado ver essa escolha ser feita exatamente para contar uma história já tão conhecida, que seus personagens se tornaram ícones clássicos do terror moderno. Ainda mais em uma época que o terror é o gênero mais aberto a experimentações e o mais bem recebido pelo público por se permitir ousar.

Cemitério Maldito (Pet Sematary, EUA, 2019), a nova releitura (melhor colocar dessa forma), é dirigida por Kevin Kölsch e Dennis Widmyer, com roteiro de Jeff Buhler em cima do argumento de Matt Greenberg, inspirado pelo livro do Stephen King, detalhe muito importante. Greenberg muda eventos, corta personagens e cenas importantes para reconstruir a história. O roteiro de Buhler usa frases do livro fora do contexto original, como easter eggs, que acabam ganhando um tom de fanservice da forma mais preguiçosa possível. Aliás, há alguns easter eggs visuais divertidos pelo filme. Mas o produto final é uma colcha de retalhos com vislumbres da história original.

Não dá para apontar os principais problemas do filme sem spoilers, por isso a partir desse ponto do texto, irei comentar cenas e decisões de roteiro dentro do filme para melhor analisá-lo.

No novo filme, Louis Creed, sua esposa Rachel, seus dois filhos Ellie e Gage, além do gato, Church, se mudam para uma cidade menor, no interior do Maine, para que Louis tenha um emprego mais tranquilo e possa passar mais tempo com sua família. Na frente da casa existe uma autoestrada por onde passam caminhões de carga em alta velocidade, e atrás, no quintal, há um antigo cemitério de bichos de estimação. Ellie e Rachel, descobrem o cemitério ao presenciarem um grupo de crianças andando em procissão para o cemitério, para enterrarem um pequeno animal. Curiosa, Ellie vai sozinha até o terreno e conhece o vizinho que mora do outro lado da estrada, Jud Crandall. Jud se torna amigo da família, que tem uma vida tranquila e perfeita até que o gato Church é atropelado e morre.

Um dos pontos mais fortes da história original é a amizade entre Louis e Jud, que se conectam desde o primeiro dia e criam um laço forte, que leva Louis a confiar em Jud. Dessa vez, Jud se aproxima da família através de Ellie, e nada mostra uma forte ligação entre ele e Louis. Quando Jud leva Louis para enterrar Church, o ponto chave de todo o filme, não há credibilidade. Não há uma razão forte suficiente para Louis simplesmente aceitar enterrar o gato em um local tão longe do cemitério de bichos.

Outra grande questão que é deixada de lado no filme é a dos pais da Rachel que não aceitam o casamento com Louis. Essa tensão que paira entre eles é importante para o desencadeamento de tudo o que acontece, porque Louis está sozinho em casa. Nessa releitura, Rachel participa de tudo sem questionar nada, o gato morre e volta. É a morte do gato que a leva a relembrar da morte da irmã e toda a sua questão com a morte. Então é quando começam as escolhas preguiçosas do filme. O fato de Rachel ter ajudado a cuidar da irmã doente quando ela era pequena, é uma das passagens mais assustadoras do livro. Uma menina de oito anos ser deixada sozinha com a irmã acamada, que está morrendo lentamente, é horrível. Não precisa fantasmas, demônios, nada, apenas a ideia de uma menina de oito anos testemunhar a irmã morrer, sem querer, já é assustador o suficiente. Não sei se por não compreender ou por subestimar o público, no novo filme a morte de Zelda, irmã de Rachel, é quase que acrobática e beirando o gore, banalizando o momento.

Por fim, acontece a maior mudança na história do filme, quem morre é a Ellie e não o Gage. Mais uma vez uma escolha que subestima o público do filme. Ela não é impactante, muito pelo contrário, porque é exatamente quando a Ellie volta que o filme se perde. A menina volta com um plano de vingança, o que não faz sentido, levando a cenas tolas, principalmente nas interações entre Louis e a filha morta viva. Daí pra frente o filme segue por um caminho fácil, Ellie se torna o monstrinho do qual temos que ter medo e de quem os outros personagens tem que fugir, culminando em um fim bobo que descarta tudo que a história original constrói.

A escolha de matar Ellie e não Gage, com certeza foi feita para que o novo filme tivesse um elemento “surpresa”, principalmente porque toda a sequência cria uma rápida dúvida de qual criança será atropelada. Porém, é uma escolha mal pensada, porque dentro da trama original há a importância da cumplicidade entre mãe e filha. Há a quebra prematura do vínculo entre irmãos, apesar dos dois serem tão novos. E há o impacto enorme causado pelo fato de um menininho de dois anos voltar como um ser demoníaco. Claro que uma menina de nove anos também é forte, mas até isso o novo filme não constrói direito. Além de tudo, na história original, exatamente por manter Rachel alheia da existência do cemitério Micmac, há também a questão de Louis passar por tudo sozinho e acabar enlouquecendo no processo, o que leva o público a compreender suas escolhas até o final. Mesmo que não aprove. Nessa nova versão tudo é confuso, corrido, sem a preocupação de fazer o público se envolver com a história e com os personagens. Não há empatia.

O novo Cemitério Maldito só não é horrível porque seu elenco é muito bom. John Lithgow como Jud Crandall, foi uma excelente escolha, mas mal aproveitada. Jason Clarke como Louis Creed é convincente, e seria perfeito na versão de Mary Lambert de 1989. E a grande estrela do filme é sem dúvida a pequena Jeté Laurence, Ellie Creed, que vai de adorável para assustadora com muita facilidade. Infelizmente o novo Cemitério Maldito faz escolhas fracas, desconstrói a história de uma forma ruim e termina sendo uma versão segura de uma história que é genial exatamente por ser ousada. É engraçado saber que King tem raiva até hoje de Kubrick por ter mudado muito coisa em “O Iluminado”, mas parece não ter se importado com o que fizeram com esse filme. Talvez porque já exista uma outra adaptação excelente de seu livro. No fim, a frase de efeito do filme faz sentido: “Às vezes estar morto é melhor”.

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