Quando fui morar em Londres em 2000, tratei logo de tirar do caminho a parte histórica/turística obrigatória, pra poder entrar no ritmo de morador, e não só visitante da cidade. Um dos tours guiados que fiz foi pelos locais dos crimes de Jack, o Estripador. O assassino que no verão/outono de 1888 mutilou cinco prostitutas numa área pobre de Londres. Mas não fiz um tour aleatório: escolhi o passeio guiado por Donald Rumbelow. Minha mãe já havia feito o tour e tinha comprado o livro dele. Desde a primeira edição, nos anos 70, Rumbelow vem atualizando o livro para incorporar novas teorias e descobertas. Não se enganem pelo papel de guia turístico do autor: ele é uma das maiores autoridades no assunto. Rumbelow foi policial, curador do museu da polícia, fez extensas pesquisas e teve acesso aos arquivos e documentos da Scotland Yard, e juntou tudo num livro que é referência sobre o caso.
Os assassinatos intrigam e fascinam até hoje, em parte pelo fato de continuarem sem solução, em parte pelo mito da Londres Vitoriana, a Londres do fog popularizada pelos filmes de terror. Mas não há nada de romântico na Londres retratada por Rumbelow. Antes de narrar os crimes propriamente ditos, ele aborda a realidade cruel dos trabalhadores mais pobres da capital, das mulheres desempregadas que se prostituíam em troca de umas doses de gin e uns trocados para alugar uma cama nos vários dormitórios do East End. Era o lado sórdido da então maior potência do planeta.
Nesse clima de miséria e insatisfação com as autoridades, em pouco mais de dois meses, cinco mulheres foram assassinadas a facadas com características muito semelhantes. As mutilações levaram muita gente a especular que o assassino tivesse conhecimento médico. Testemunhos contraditórios, uma mensagem deixada na parede, e algumas cartas recebidas por jornais apontavam a polícia em direções diferentes. Depois do último e mais brutal, os assassinatos pararam. Teria o Estripador sido preso por outro crime? Alguns acreditavam que seria um marinheiro de passagem pelo movimentado porto de Londres. Teria deixado o país de vez?
Rumbelow é também um excelente historiador da evolução das técnicas de investigação. Ele deixa claro que na época a polícia não tinha muitos recursos. Conan Doyle havia publicado a primeira história de Sherlock Holmes um ano antes, mas a realidade da Scotland Yard estava muito distante das investigações científicas do detetive fictício. Pra se ter uma ideia, a identificação por impressões digitais só seria aceita em tribunais 14 anos depois. Exames podiam identificar manchas de sangue, mas mal podiam diferenciar entre sangue humano e de animais; a descoberta de que havia diferentes tipos sanguíneos também ainda estava distante. A solução dos crimes dependia basicamente de prisões em flagrante ou de relatos de testemunhas. E num bairro com uma população ignorante, que consumia grandes quantidades de gin, encontrar testemunhas confiáveis era quase impossível.
Ao longo desses 130 anos, os crimes produziram uma galeria de suspeitos, teorias conspiratórias, muitas fraudes e supostas soluções sensacionalistas por “ripperologistas”. Rumbelow disseca cada possibilidade cuidadosamente. Explica por quê descarta este ou aquele suspeito, desmonta conspirações (como a famigerada conspiração envolvendo a família real, que já rendeu vários filmes) e desmascara teorias estapafúrdidas como a proposta por Patricia Cornwell – que aliás me irrita profundamente… Não esperem no livro uma solução ou revelação bombástica. O que ele faz é examinar as evidências e possibilidades, desmentir erros e falsidades, e deixar as conclusões por conta do leitor.
Rumbelow é simpático e atencioso. Termina o tour no Ten Bells, um pub caindo aos pedaços, remanescente da época, onde provavelmente algumas das vítimas bebiam, e tira dúvidas. Pergunto se ele tem um suspeito favorito, e ele diz que acha que provavelmente foi alguém desconhecido que nunca apareceu nas investigações. Ele também é respeitoso: alguns desses tours caem no sensacionalismo, mas ele faz questão de lembrar as vítimas, mulheres que sofreram muito em vida e certamente não mereciam aquele fim brutal.
O East End em 2000
Em 2015, voltando a Londres de férias, fiz o tour de novo, mas não consegui pegar Donald Rumbelow. Depois dos 70 anos ele já não faz mais os passeios com tanta frequência. Achei até que o tour perdeu um pouco a razão de ser. Os locais originais já não existem mais. Um deu lugar a um edifício-garagem, outro a uma torre de escritórios. Já em 2000, a região do East End e de Whitechapel estava sendo renovada, com muita construção acontecendo. Hoje o bairro é chique, muitos artistas abriram ateliês e galerias, e a região se tornou um pólo gastronômico. O pub acabado que eu conheci foi vendido pra uma grande rede de bares e totalmente reformado, com millennials bebendo em pé na calçada de tão cheio que estava. Não me dei ao trabalho… O que resta está em livros como o de Rumbelow.
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O que pode ter ocorrido foi que simplesmente o assassino sofreu alguma fatalidade, quem sabe morte por acidente, ou mesmo assassinado, ou teve um ataque de apoplexia..rs.. Ele não frequentava lugares seguros, era uma pessoa que corria riscos. Um homem, aparentemente, como qualquer outro, mortal.
Vontade era que não acabasse seu texto. Abraço.
Obrigado, Marcelo.
Essa hipótese realmente é bem forte. Inclusive, um dos principais suspeitos, Montague J. Druitt, se matou no Tâmisa pouco depois do último crime… Mas fora essa coincidência, não há muitos indícios de que ele pudesse ser o assassino… Muita gente também acha que ele pode ter sido preso por outro crime, sem que a polícia descobrisse que ele era o Estripador. Enfim, são muitas as hipóteses e é por isso que esse caso ainda fascina.