Resenhas

N. K. Jemisin

Já falei aqui de como N. K. Jemisin fez história recentemente: além de ser a primeira escritora negra a ganhar a categoria principal do maior prêmio literário da Ficção Científica, o Hugo, ela foi mais longe e venceu três anos seguidos – a primeira vez pra qualquer escritor, de qualquer cor. Agora está rompendo a barreira do nicho geek e sendo descoberta pelo mainstream: ganhou um perfil de página inteira na revista Entertainment Weekly, como a mulher que está revolucionando a Ficção Científica. Então vamos conhecê-la um pouco mais.

N.K. Jemisin (foto: Laura Hanifin)

Nora Jemisin é filha de um artista plástico. Fã de fantasia e FC desde pequena, achava que não havia espaço para ela num gênero dominado por homens brancos. Mas descobriu Octavia Butler (Kindred – Laços de Sangue, A Parábola do Semeador) e resolveu tentar. Ganhou confiança depois de participar de uma oficina para escritores, mas esbarrou logo de cara num racismo velado das editoras. Ninguém quis seu primeiro romance, The Killing Moon – uma fantasia épica que ela mesma reconhece ter uma estrutura convencional. O “problema” é que o mundo dela era inspirado no Egito antigo, e os personagens eram negros. As editoras diziam que não sabiam se teria público…

Jemisin quase desistiu ali mesmo de seguir carreira. Mas despejou a frustração, pra não dizer raiva mesmo, em outro livro, The Hundred Thousand Kingdoms. Nele, criou um mundo muito bem realizado em que deuses derrotados numa guerra celestial viravam escravos dos mortais. A herdeira involuntária dos Cem Mil Reinos é jogada numa intriga e tem que desvendar segredos do próprio passado. A protagonista novamente era negra, mas de repente as editoras estavam fazendo um leilão pra ver quem conseguia assinar com Jemisin. Foi indicado a todos os principais prêmios do gênero – Hugo, Nebula, World Fantasy, Tiptree, entre outros. Ganhou continuações, e garantiu a publicação de The Killing Moon – e o livro que tinha sido rejeitado por todo mundo agora também colecionava indicações a prêmios.

Então veio a trilogia da Terra Partida: A Quinta Estação, The Obelisk Gate, e The Stone Sky. O primeiro já saiu aqui pela Morro Branco, os outros dois já estão prometidos pela editora. Um mundo (que pode ser a Terra num futuro distante) é abalado de tempos em tempos por cataclismas sísmicos de proporções tão gigantescas que jogam a sociedade décadas para trás no desenvolvimento. Certas pessoas, os orogenes, têm o poder de controlar as rochas e o solo. Isso pode ser útil, como para revolver a terra para a agricultura. Mas pode ser catastrófico quando o orogene perde o controle e extravasa a raiva. Por isso, os orogenes são vistos com desconfiança e rechaçados pela maioria da população.

Jemisin diz que a ideia original veio de um sonho em que ela era perseguida por uma mulher que trazia uma montanha inteira suspensa no ar. Mas que se inspirou nas mortes de jovens negros e no movimento Black Lives Matter para discutir o preconceito e como isso racha famílias e sociedades. O primeiro é de longe o mais interessante do ponto de vista literário: a autora costura duas linhas narrativas que no fim vão se encaixar de modo surpreendente. Os dois volumes seguintes seguem as consequências dessa revelação, rumo a um confronto entre mãe e filha, ambas levando seus poderes ao limite.

O que vem por aí? Jemisin diz que quer transformar seu conto de 2016 “The City Born Great” num romance. Nele, as grandes cidades são entidades vivas, que a partir de certo ponto ganham consciência. O conto mostra como Nova York adquire essa conciência – com uma ajudinha de São Paulo! O conto vai estar numa coletânea que sai lá fora em novembro, How Long ‘til Black Future Month?

E a trilogia Terra Partida está sendo desenvolvida como série pela TNT.

Ao ganhar o terceiro Hugo seguido, N. K. Jemisin fez um discurso em defesa da diversidade e contra o racismo que viralizou e já ficou entrou pra história. Pra quem ainda não viu, aí vai uma tradução:

Esse tem sido um ano difícil, não é? Alguns anos difíceis. Um século difícil. Para alguns de nós, as coisas sempre foram difíceis. Eu escrevi a trilogia Terra Partida para falar dessa luta, e do que é necessário pra simplesmente viver, quanto mais prosperar, num mundo que parece determinado a te quebrar. Um mundo de gente que constantemente questiona sua competência, sua relevância, sua própria existência.

Me perguntam muito sobre de onde vêm os temas da Trilogia da Terra Partida. Acho que é bastante óbvio que estou me inspirando na história da opressão estrutural da humanidade, assim como nos meus sentimentos sobre este momento atual da história americana. O que pode ser menos óbvio, no entanto, é o quanto da história é derivado dos meus sentimentos sobre Ficção Científica e Fantasia. Mas é claro que o gênero é um microcosmo do mundo maior, e não está a salvo da mesquinhez ou do preconceito no mundo.

Mas outra coisa que tentei abordar na Terra Partida é que a vida num mundo difícil nunca é só uma luta. A vida é a família, de sangue ou por afinidade. A vida são os aliados que mostram seu valor através de ações, e não apenas do discurso. A vida significa celebrar cada vitória, não importa o quão pequena.

Então ao ficar diante de vocês, nesses holofotes, quero que vocês se lembrem de que 2018 é também um bom ano. É um ano em que recordes foram batidos. Um ano em que até aqueles mais cegos pelos privilégios foram forçados a reconhecer que o mundo está quebrado e que precisa ser consertado – e isso é bom! Reconhecer o problema é o primeiro passo para consertá-lo. Eu vejo a Ficção Científica e a Fantasia como o impulso inspirador do Zeitgeist: nós criadores somos os engenheiros de possibilidades. E quando esse gênero finalmente, mesmo com resistência, reconhecer que os sonhos dos marginalizados importam e que todos nós temos um futuro, então o resto do mundo também vai reconhecer. Espero que seja em breve.

E sim, vai haver contrariedade. Eu sei que estou aqui neste palco, recebendo este prêmio, basicamente pelo mesmo motivo de todos os ganhadores anteriores de Melhor Romance: porque eu trabalhei pra cacete. Eu derramei minha dor sobre o papel quando não podia pagar por terapia. Estudei obras literárias de grande amplitude e que vão fundo, para aprender o que podia e refinar a minha voz. Escrevi um milhão de palavras de porcaria e provavelmente outro milhão de ‘meh’.

Mas além disso, eu sorri e balancei a cabeça quando bem-intencionados editores de revistas me recomendaram que abrandasse minhas alegorias e minha raiva. (Eu não obedeci.) Rangi meus dentes quando um renomado escritor profisional berrou comigo por dez minutos, como seu eu representasse todos os negros, por eu ter mencionado a sub-representação na ciência. Continuei a escrever mesmo quando meu primeiro romance, The Killing Moon, foi inicialmente rejeitado pela presunção de que só leitores negros poderiam ter algum interesse em ler o trabalho de um escritor negro. Levantei a minha voz pra falar mais alto do que participantes de um debate que insistiam em falar mais alto do que eu sobre a minha própria maldita vida. Eu lutei comigo mesma, e contra aquela vozinha dentro de mim que constantemente ainda sussurra que eu deveria simplesmente baixar a cabeça, ficar quieta e deixar os escritores de verdade falarem.

Mas este é o ano em que eu posso sorrir pra cada um daqueles que diziam ‘não’ – cada medíocre, inseguro e pretencioso que abre a boca pra sugerir que eu não pertenço a este palco, que pessoas como eu não são capazes de merecer tal honraria, que quando eles ganham é “meritocracia”, mas quando nós ganhamos é “política de identidade”. Eu sorrio pra essas pessoas e mostro um enorme, brilhante dedo médio em forma de foguete pra eles.

Quantos de vocês viram Pantera Negra? Provavelmente minha parte favorita é na verdade a canção tema de Kendrick Lamar, “All the Stars.” O Refrão diz: “Esta pode ser a noite em que meus sonhos podem me permitir saber que esa estrelas estão mais próximas.” Que 2018 seja o ano em que as estrelas ficaram mais próximas de todos nós. As estrelas são nossas. Obrigado.

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