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A Casa Tomada – após Cortázar – parte I

A Casa Tomada – após Cortázar – parte I

“Era para nós agradável almoçar pensando na casa ampla e silenciosa e em como nos bastávamos para mantê-la limpa. Às vezes chegamos a pensar que foi ela que não nos deixou casar.”

Júlio Cortázar, A Casa Tomada, 1951

Durante a minha infância, grande parte passada dentro de apartamentos, minha mãe contava essa breve narrativa sobre um conhecido da nossa família que morava em uma casa de dois andares, na beira de alguma praia distante… ela contava que isso tudo havia acontecido há muitos anos, quando algumas cidades ainda eram novas…

 

O quarto principal da casa, no andar de cima, tinha apenas uma ampla janela vertical. Durante o dia, essa janela permanecia aberta e podia-se ouvir as ondas, os pássaros e ver o mar.

À noite, no entanto, o único morador da casa fechava a janela por causa do vento forte, do ruído ensurdecedor da maré noturna e, principalmente, por causa da árvore sem folhas que insistia em existir ao lado da casa, as raízes grudadas na parede como veias ressequidas. Com o vento e as movimentações noturnas do mundo, um galho ossudo, com longos dedos, avançava para dentro do quarto; com a janela fechada, o galho apenas batia no vidro, como alguém que insiste para entrar… De um jeito ou de outro, não era exatamente agradável ficar no quarto durante a noite e o conhecido da nossa família passava longas horas no andar debaixo, na sala, assistindo televisão até o sono se instalar definitivamente. Então ele subia e se jogava na cama, sem tempo para perceber a velha árvore, as sombras e os ruídos.

 

Houve um mês, novembro se não me engano, de muita chuva – durante 29 dias, a partir das 17 horas, o céu desabava. O mar agitado e as ondas altas; as ruas de terra se transformaram em travessas lamacentas, os armazéns fecharam e a eletricidade era intermitente.

Durante alguma madrugada perdida no meio de tantas outras, o solitário habitante da casa vazia se encontrava assistindo algum filme bem antigo na televisão de tubo, na sala, quando a luz caiu. De repente, sozinho com os ruídos de uma natureza furiosa do lado de fora, sentiu que estava frio, os pés gelavam sobre o chão de pedra, e ele resolveu ir lá em cima, no quarto, pegar meias de lã.

Suspirou (ou eu imagino que tenha suspirado), levantou e subiu a velha escada de madeira, que rangeu; atravessou o corredor no escuro – conhecia muito bem a casa, seu domínio. Entrou no quarto tomado por sombras e, apesar de continuar andando, seus pensamentos haviam parado por um instante: a janela estava aberta, o chão molhado e o galho dentro do quarto, preso em alguma dobradiça.

Ele parou, não exatamente com medo, mas pensando no que havia acontecido, no que fazer – o vento abriu a janela, claro (apesar do antigo trinco de ferro que balançava lentamente como um cadáver na moldura da janela); a chuva e o vento, apenas isso, a chuva, o vento e seus antigos truques, ele pensou ou deve ter pensado.

Tudo ao redor era de uma escuridão atroz. Nem a luminosidade cinza-azulada da tempestade vencia. Ele tentava, mentalmente, organizar a ordem das coisas: fechar a janela, pegar um pano, pegar as meias – só então se deu conta de que, automaticamente, já estava parado diante da cômoda, perto da janela, a gaveta das meias aberta…

Ele deve ter se espantado, de forma quase cômica, com o automatismo das ações cotidianas.

Fechou a gaveta, decidido a descer e pegar um pano-de-chão, enxugar essa água toda…, ele deve ter pensado, sem se dar conta de que deveria fechar a janela, as incongruências e inconsistências da madrugada. Virou, deu um passo na direção da porta e sentiu algo puxá-lo para trás.

O galho!, a esposa falecido, o filho expulso, a árvore sem folhas que ele devia ter arrancado e queimado –
sem coragem de olhar para trás, gemeu muito baixo pois o coração já explodia dentro do peito.

Revirou os olhos enquanto o corpo, simultaneamente, endurecia e caía para trás. A última coisa que viu foi a sombra pouca nítida de uma imensa mão no teto branco do quarto.

§

Alguns dias depois, quando a chuva havia passado e a pequena cidade estava funcionando quase normalmente, alguma vizinha entrou na casa para ver se estava tudo bem – o solitário morador não havia aparecido na venda, nem no bar nem na praça…

Ela passou pela sala e desligou a tv – a luz havia voltado e, como ele não havia desligado a tv, ela também retornou como um fantasma. A vizinha subiu a mesma escada, atravessou o mesmo corredor, dessa vez iluminado pela pálida luz matinal, e parou na porta do quarto, com um misto de horror e nojo. Levou uma das mãos ao peito e a outra ao rosto: o homem estava no chão do quarto, verde-cinza, com rastros de sangue coagulado saindo da boca e do nariz; o cheiro de podridão e a nuvem de moscas foram coisas que ela jamais esqueceu.

Ele estava caído de frente, seminu. O short – e esse detalhe foi a solução racional do caso – estava preso em uma das gaveta da cômoda (depois descobriram que era a gaveta das meias) e abaixado até quase os joelhos, como se alguém – ou alguma coisa – o houvesse puxado para trás.

A casa nunca mais foi habitada por um ser humano. Abandonada às intempéries. A velha árvore se alastrou por todas as frestas, todos os cômodos, espalhando suas raízes e galhos por todas as paredes, destruindo os telhados, a madeira (como em um estranho gesto canibal), os tijolos, o cimento e rachando os azulejos.

Até hoje essa casa tomada existe, cada vez mais tomada, uma ruína.

§

Minha mãe me contava isso para explicar que o escuro é igual ao claro, que a noite é igual ao dia – para não ter medo.

Ontem meu short ficou preso no puxador da gaveta do banheiro e, na mesma hora, eu lembrei dessa história. Ontem, também, falamos muito sobre o medo. Tenho umas amigas e uns amigos que sempre falam “medo a gente tem, mas não usa“.

Fico pensando nas fragilidades, nos medos e nas insistências dos corpos hegemônicos que farão todos os truques para nos matar; mas nós também temos nossos truques, nossas mágicas marginais: fomos criados no medo e já sabemos, desde pequenes, que sempre será uma gaveta – um armário que seja – nos puxando de volta, para trás. Mas nós sobrevivemos: não temos medo dos monstros, das bruxas, dos fantasmas, porque nós somos essas criaturas; nós somos essa árvore que parece gente, que vai entrar na sua casa num dia de chuva e, através da fragilidade do seu medo, te devorar.

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