A partir desse mês, toda última quarta-feira do mês, vamos conversar aqui, nessa coluna, sobre um livro do Stephen King. Afinal ele é um escritor que conseguiu quebrar a barreira do preconceito com livros de terror e voltado para cultura pop, tornando-se um dos escritores mais respeitado do mundo (e querido), logo merece uma coluna só sobre ele.
Esse é um projeto que eu já havia pensado em colocar em prática há um tempo, ler e reler livros dele, trazer meus pensamentos sobre eles para o site e abrir um debate sobre essas obras. Escolhi Mr Mercedes para começar, porque, além de ter sido adaptado para a TV em forma de série, mostra a versatilidade de King e o quanto ele consegue ir fundo no lado mais negro da alma humana, assim como também criar personagens incríveis e extremamente fáceis de amar.
Mr Mercedes foi lançado no Brasil pela Editora Suma de Letras e traduzido por Regiane Winarski. É o primeiro da trilogia de Bill Hodges, protagonista da trama principal, e o primeiro livro policial que King escreveu. Totalmente influenciado por sua infância lendo pulp fiction (livros de bolso, baratos, em sua maioria com histórias policiais), quadrinhos noir e vendo filmes noir, o escritor consegue transmitir muito bem esse clima para o seu livro, com um toque bem atual.
Esse é um dos livros mais bem estruturados do autor, com uma história bem redonda, que se bastaria sem o resto da trilogia. Por mais que policial noir não seja a “praia” de King, ele parece nadar muito tranquilamente nessas águas e leva o leitor com a mesma facilidade através da história que conta. Todos os personagens clichês se encontram no livro: o policial aposentado amargurado que vira detetive particular, a mocinha que o contrata e o seduz, o ajudante engraçadinho e o vilão com plano de vingança. Ao mesmo tempo, King desconstrói esses clichês, Bill Hodges está aposentado há pouco tempo, mas ainda se sente culpado por não ter capturado o assassino do Mercedes. Janey Patterson é a mocinha, que não é mocinha, na verdade ela também quer descobrir quem é o assassino do Mercedes, responsável pela morte de sua irmã. O ajudante de Hodges é o simpático Jerome Robinson, um adolescente vizinho de Hodges e muito bom com computadores. Mais para frente Hodges também ganha a ajuda de Holly Gibney, uma das melhores personagens que King já criou. Além de Brady Hartsfield, o assassino do Mercedes que decide brincar com a sanidade de Bill Hodges, acreditando que nunca será descoberto.
Logo no prologo, King nos mostra do que é capaz e o quão profundo ele consegue ir para criar uma mente doente. Brady rouba um Mercedes e invade uma fila onde pessoas estão esperando para poderem participar de uma feira de empregos, matando 12 pessoas e deixando inúmeras outras gravemente feridas. Desde “Desespero” que King não criava uma abertura tão perturbadora para uma história. Em seguida, ele nos apresenta Bill Hodges, aposentado, dois anos depois do terrível massacre, em casa assistindo terríveis programas de televisão e pensando sobre se deve ou não continuar vivo. Mas o policial recebe uma mensagem do Mr Mercedes o desafiando a descobrir quem ele é. Brady acredita que suas mensagens irão deprimir mais ainda Hodges, mas o efeito é completamente contrário e ele decide ir atrás do terrível assassino.
Brady é um personagem muito bem construído, ele trabalha em uma loja de eletrônicos, como técnico de informática que atende clientes em casa, o que facilita sua entrada na casa das pessoas, e também trabalha como vendedor de sorvetes com um caminhão de sorvetes. Brady é jovem e tem muita raiva do mundo, em um relacionamento incestuoso com uma mãe lidando com o fato de ser viciada e ter perdido outro filho ainda pequeno. Ele é um gênio da informática e subestima a maioria das pessoas que conhece, como qualquer bom vilão já construído. A vaidade de Brady é sua maior fraqueza.
O Mercedes que foi usado no terrível ato criminoso pertencia a Olivia Trelawney, que acaba se matando por culpa e com incentivo de Brady. Nesse cenário surge Janey Patterson, irmã de Olivia, que procura Hodges para entender qual foi o papel da polícia na investigação do caso. Ela acaba o contratando como detetive particular para que a investigação volte a acontecer e eles acabam se envolvendo romanticamente. Nesse ponto King deixa de lado a visão machista da femme fatale, das histórias policiais, e nos apresenta uma personagem feminina forte, com camadas e que desenvolve um romance de forma natural com Hodges.
Ao Lado de Hodges e Janey contra Brady, está Jerome Robinson, vizinho de Hodges que cuida de seu gramado e que se aproxima dele. Hodges pede ajuda a Jerome para tentar descobrir de onde vêm as mensagens do Mr Mercedes e o rapaz acaba se envolvendo com a investigação. Jerome é um jovem rapaz negro de 17 anos, com uma excelente educação que consegue uma bolsa para uma faculdade da Ivy League norte-americana. Ele mesmo brinca com os estereótipos criados em cima de jovens negros, o que mostra muito bem o bom senso de humor de King e sua sempre presente crítica social.
Mas, de todos os personagens já criados por King, Holly Gibney com certeza é uma das minhas favoritas. Ela é uma mulher perto dos 40 anos, com um tipo de autismo, o que ele apenas cita mas não a reduz a isso. Holly é brilhante com seu senso de humor cru e honestidade excessiva. Ela se aproxima de Hodges exatamente por ele não a tratar de forma diferente e cresce de forma esplendida no livro, ganhando destaque nas duas histórias seguintes.
Mr Mercedes é muito atual por trazer à tona discussões sobre desemprego, velhice, auto aceitação, racismo, preconceito, além de renovar o gênero policial noir com uma história que prende completamente atenção. Com personagens que já são clássicos dentro de sua bibliografia. Sempre me empolgo a cada novo livro que o autor lança, mas Mr Mercedes foi o que me fez apaixonar por sua escrita tudo de novo. Vale também destacar a primorosa tradução feita por Regiane Winarski que transmite muito bem a forma de escrever de King sem perder nada na tradução.
Compre aqui:
Uma das melhores resenhas que li. O livro é de 2014, a resenha do inicio de 2018 e resolvi lê-la (old school) agora em setembro de 2018, enquanto convalescendo coloco minha leitura em dia e me encaminho para o final do livro. Exatamente após Holly Gibney entrar na história e no carro dos pais acompanhada por Hodges. Resenha fluída e muito bem estruturada. Caso já não seja, além de escrever bem – você seria uma ótima editora.