Coluna

O 1% da quarentena

Eu vou direto ao ponto.

99% das preocupações estão relacionadas ao novo coronavírus: o vírus em si, confinamento, quarentena, isolamento social, cordão sanitário ou qualquer uma dessas coisas aí que ninguém está de fato fazendo no Brasil (não me olha assim! Você também não está fazendo de verdade, admita. Ir até o mercadinho na esquina ou dar a volta no quarteirão pra esticar as pernas e pegar sol não é fazer quarentena, e tudo bem, eu te entendo!), desemprego, economia, efeito Trump-Bozo, quais restaurantes boicotar, os amigos ou colegas de trabalho que postam foto no shopping em plena pandemia global, a galera sem máscara, álcool gel, o pessoal que diminui o vírus, o pessoal que exagera o vírus, a galera que mente e se aproveita da pandemia pra ganhar dinheiro, o jornalista sem provas, o negacionista que generaliza e desmerece a imprensa, os conspiradores, os otimistas, os pessimistas, a direita e a esquerda, o maluco que acha que todo mundo quer se aproveitar de tudo, a galera que acredita em tudo que a mídia diz, taxas altas de entrega do ifood, livrarias fechando, hospitais se aproveitando, mortos normalizados, presidente que não dá a mínima, gente que nega a realidade, gente que não sabe mas finge que sabe, deduz muito e entende é nada, pouca empatia ou nenhuma, gente que desdoura o Átila, bichos no Instagram com nome de gente, falta de beijo ou abraço, da saída e dos amigos, afinal, não tem cinema, não tem PA… e maldição esse Zoom e reuniões para “alinhar”.

E o 1% que restou?

Esse 1% é todo o resto que, do núcleo do nosso isolamento privilegiado, olhando para as mesmas janelas e portas e paredes todos os dias, nos permite ver muito mais longe. Cada dia que passa, a parede do meu quarto me revela uma visão muito mais ampla. Ela não se fecha e me confina, pelo contrário. Ela se abre em milhares de caminhos. Porque resolvi me encontrar nesse 1%.

E quais são essas preocupações do 1%?

Ora, os bolos, os pães, quebra-cabeças, exercícios, yoga, fazer a cama, fazer faxina, jogar videogame, aprender um novo idioma, praticar um instrumento musical, mais proximidade com quem a gente divide apartamento, mais tempo com os filhos ou com os pais, horas de papo por telefone, escrever diário ou um livro, maratonar séries antigas, pintar uma parede, resgatar o passado, pensar no futuro, refletir sobre a vida, exercitar empatia, ler, entender, suportar, se adaptar, se desafiar, meditar, colocar a vida em perspectiva, olhar para si e aceitar de uma vez por todas as prioridades, descobrir o que realmente importa, quem nos faz bem e quem nos faz mal, como decidimos passar o dia e para quem dedicamos o nosso tempo, sobretudo identificar o que escolhemos fazer por e para nós mesmos, se lamentamos ou provocamos, desistimos ou tentamos. Pensar de verdade no que é melhor: emudecer ou falar? Questionar ou condenar?

É esse 1%, que acontece nas horas vagas, nos fins de semana, cedo pela manhã ou tarde da noite, em que o teto do nosso quarto é nossa única testemunha e o chão nosso único amigo, que me faz enxergar melhor os outros 99%. Eu só descubro o que é mais importante no final do dia, se eu escolher aproveitar esse 1% introspectivo desse momento da vida pra me testar.

Não à toa escolhi esse ano para ler, de uma vez por todas, sem desistir no caminho, Crime e Castigo, de Dostoiévski. Acho que finalmente estou preparada para entender um personagem tão prolixamente introspectivo. Será que, entre bolos, quebra-cabeças, pinturas de parede e séries de adolescente, consigo terminar esse livro até o “fim” da quarentena?

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