Livros

Prêmio Hugo 2020

Este ano deveria ser o da minha primeira Convenção Mundial de Ficção Científica, a WorldCon. Eu pretendia cobrir da Nova Zelândia esse encontro anual de fãs de Ficção Científica e Fantasia com os escritores. A convenção acabou se tornando virtual. E a cerimônia de premiação do Hugo, o principal prêmio do gênero, acabou sendo histórica – por bons e maus  motivos.

Ana Grilo

Primeiro, o lado positivo. Tivemos a primeira brasileira a ganhar um foguete prateado: Ana Grilo, que junto com a filipina Thea James publica a fanzine The Book Smugglers. Elas vinham sendo indicadas seguidamente, e ganharam por 4 votos – um deles o meu! Neil Gaiman dedicou o prêmio para Good Omens ao amigo e co-autor Terry Pratchett. S. L. Huang ganhou o de melhor conto com As the Last I May Know, N. K. Jemisin vai botar o quarto prêmio na prateleira, e Amal El-Mohtar e Max Gladstone ganharam o quarto prêmio da temporada pra novela This is How You Lose the Time War (depois do Nebula, Locus e BFSA). Na categoria principal, Melhor Romance, havia três escritoras concorrendo logo com seus livros de estreia, e uma delas acabou levando: Arkady Martine, com A Memory Called Empire. A autora, que trabalha com planejamento urbano e tem formação como historiadora especializada no Império Bizantino, traça uma trama política complexa a partir do envolvimento da embaixadora de um pequeno sistema na côrte de um império galáctico. De quebra, examina questões de identidade, memória e hereditariedade.

Mas se os prêmios em si foram positivos, uma celebração da diversidade no que já foi um gênero de homens brancos, quem destruiu a noite foi ninguém menos que o autor das Crônicas e Gelo e Fogo, George R. R. Martin. Era uma operação tecnicamente complicada: os organizadores na Nova Zelândia, Martin ao vivo no cinema dele no Novo México, looongos trechos pré-gravados por Martin, além dos indicados aguardando o resultado ao redor do mundo – alguns ao vivo, outros com discursos de agradecimento pré-gravados. Mas isso até que funcionou bem, com poucos problemas técnicos. Nesse sentido, foi uma convenção realmente  mundial. 

Mas Martin dominou de tal forma a cerimônia que não houve espaço para que os anfitriões mostrassem um pouco da cultura neozelandesa. E quanto mais ele falava, mais a situação piorava. A premiação mal havia começado, e os organizadores já emitiram um comunicado pedindo desculpas por declarações que pudessem ter sido desrespeitosas.

Martin se atrapalhou ao ler os nomes de origem africana e asiática de vários indicados. Errou até a pronúncia da revista americana FIYAH, especializada em publicar ficção especulativa de autores negros. É o segundo ano que a revista é indicada. Martin jura que não recebeu as orientações sobre pronúncia que todos os indicados enviaram aos organizadores. Mas isso não é desculpa, ainda mais pra quem pôde preparar tudo de casa. Muitos dos erros foram nas partes pré-gravadas, que poderiam ter sido ensaiadas e refeitas. O descaso feriu muito quem batalhou tanto pra estar ali e ter a sua voz ouvida.

Tem um dinossauro nesta foto

Mas o que ele não explicou até agora foi a insistência em exaltar uma figura notória pelo racismo, misoginia e fascismo como John Campbell Jr. 

Campbell foi o mais importante editor da era de ouro da FC, nas décadas de 1940 e 1950. Ajudou a moldar as carreiras de autores como Asimove e Heinlein. Mas também barrou a publicação de mulheres e negros, e tinha uma visão política altamente colonialista. Até o ano passado, o prêmio que reconhece o melhor escritor novo, ou “escritor revelação” tinha o nome dele. Mas a ganhadora de 2019, Jeannete Ng, fez ano passado um discurso impactante expondo o que na verdade todo mundo já sabia: Campbell era um fascista. A editora que patrocina o prêmio reconheceu, e este ano mudou o nome do prêmio para Astounding – título da revista que Campbell editava, e que hoje se chama Analog. Pois bem, Martin fez um longo discurso sobre a contribuição de Campbell, e sempre que pronunciava o novo nome do prêmio – Astounding! – era com ironia (a exclamação é dele). Ao longo da noite, fez repetidas reverências a Campbell. 

R. F. Kuang

Mas não ficou sem resposta. Assim como no ano passado, a ganhadora de 2020, Rebecca (R. F.) Kuang é chinesa, e expôs no discurso de agradecimento o racismo e sexismo que sofreu pra chegar até ali. E mais tarde, Jeannette Ng voltou a falar: ela ganhou o Hugo de Obra Relacionada (não-ficção) justamente pelo discurso da cerimônia do ano passado em que detonou Campbell. No discurso deste ano, ela disse que derrubar memoriais a racistas mortos não significa apagar a história, e sim fazer história. “Temos que ser melhores do que os legados que recebemos,” disse ela, emocionada, falando de um futuro de esperança, alegia e mudança.

Jeannette Ng

Basta olhar pra diversidade dos ganhadores deste e dos últimos anos para ver que as correntes do passado estão sendo rompidas, e que novas gerações de autores, leitores e fãs estão construindo uma nova e bela narrativa para o futuro.

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