“A Mulher na Janela” (A. J. Finn, tradução de Marcelo Mendes, Editora Arqueiro) foi um livro que me marcou bastante quando li. Narrado em primeira pessoa, somos transportados para a mente de Anna Fox, uma psicóloga infantil fora da ativa. Separada da família – mas em contato constante com ela -, Anna passa os dias em sua casa de três andares em Manhattan, NY, espiando a vida dos vizinhos pelas inúmeras janelas, jogando gamão na internet, assistindo DVDs de filmes clássicos e papeando em fóruns on-line. Os únicos companheiros de Anna, além de seu felino Punch, são comprimidos e inúmeras garrafas de vinhos, ambos espalhados pela casa. Amanhece e anoitece, mas Anna segue essa rotina. Se você ainda não sabe, ou ainda não ficou claro, Anna é agorafóbica.
Essa condição às vezes se dá pós um trauma sofrido. Esse foi o caso de Anna, mas o leitor só vai descobrir o que aconteceu para mantê-la refém de si mesma bem adiante no livro. Enquanto isso não é desvendado, outro conflito – nesse caso, externo – aparece na narrativa: uma família se muda para a casa da frente e não só o pai aparece abusivo e o filho traumatizado, como a mãe é assassinada. E Anna vê tudo! Mas o que será que ela viu, já que vive em uma nuvem entre realidade e torpor causado por álcool e medicação? E se a mulher que a conheceu não for quem ela acha que é? E se David, o cara que aluga o porão de sua casa, estiver escondendo mais do que aparenta estar? E se…
Com Anna nos guiando nos acontecimentos, sua condição de narradora não confiável é excelente para nos manter como ela: sem realmente ter certeza de nada até o fim do livro. A. J. Finn soube orquestrar todos esses elementos em sua primeira narrativa tão bem, que os direitos foram vendidos para o cinema. Então, “A Mulher na Janela” virou filme com Amy Adams como Anna, Gary Oldman como vizinho e as maravilhosas Julianne Moore e Jennifer Jason-Leigh como vizinhas. Duas? Sim, para entender você vai precisar ler/assistir!
Era para o filme ter saído há alguns anos, mas com pandemia e situações de compras de estúdio e refilmagens, só conseguimos ver o que o roteirista Tracy Letts (de “Álbum de Família”, filme e peça) e o diretor Joe Wright (de” Orgulho e Preconceito” e “O Destino de Uma Nação”) fizeram com a adaptação esse ano, por intermédio da Netflix.
Vou evitar spoilers, então podem ler sem medo.
É essencial deixar claro que mídias diferentes têm linguagens diferentes. O livro tem o poder de dar protagonismo para a imaginação de cada leitor. Não importa quantas pessoas lerem, sempre vão ter imaginado de formas diferentes cada personagem, cada cenário ou ação. Já o filme ou série já é uma interpretação de um roteirista e um diretor. Enquanto no livro nós leitores somos ativos para imaginar como quisermos, até mesmo ignorar descrições feitas por autores, no audiovisual, nós como público somos passivos a ver uma interpretação única. Claro que a linguagem de enquadramento, ritmo, montagem e fotografia é múltipla, e nos ajuda a interpretar o que estamos vendo de várias formas. Longe de mim dizer que um filme ou série é simples ou sem facetas, muito pelo contrário! Uma cena pode ter inúmeras interpretações se ela for planejada assim, se ela contar com o uso da fotografia, enquadramento, montagem e tudo que listei acima para nos apresentar essas camadas conforme ela acontece na tela. Infelizmente, pra mim, essa foi uma das falhas do filme “A Mulher na Janela”.
O filme começa com tudo isso, mesclando elementos dos filmes antigos como “Janela Indiscreta” (que passa na TV de Anna, e é uma das inspirações e homenagens do autor) com o sonho e a realidade da personagem. Além do pop-gulp de pílulas e goles de vinho em sequência que mantém Anna em pijamas e roupão o filme todo.
Tracy Letts ganhou prêmios por suas peças e o cenário e movimentação de Amy Adams pela casa cavernosa é muito teatral. Não digo isso no sentido “over” da expressão, mas sim que lembra os cenários teatralizados usados por Hitchcock no passado. Isso, em si, é algo que me deixou muito empolgada quando começou, porque é excelente para a estética do filme. Mas ele perde a força logo no grande momento de revelação sobre o passado de Anna. Visualmente, poderia ser mais forte do que já é, mas foi preguiçoso ter um personagem apenas contar os fatos.
E essa preguiça – de ter personagens entrando na casa de Anna para revelar as grandes reviravoltas da trama – foi o que feriu a adaptação. Anna Fox está vivendo uma batalha diária na mente dela, algo que no livro nós sentimos a cada página. No filme, temos personagens invadindo seu espaço seguro para vomitar informação, algo que considero muito amador para ser um recurso utilizado por profissionais tão incríveis. Oldman, Moore, Adams… todos cumprem seus papéis como podem dada a limitação de seus personagens na tela. Mas poderia ser tão melhor!
Em suma, o filme “A Mulher na Janela” não é ruim, mas é raso. Ele é só a primeira camada da história que, no livro, é mais profunda, mais explorada. Até o final tem mais força nas páginas (que é diferente do que acontece no filme). Tanto para quem assistiu o filme e gostou, quanto para quem não gostou, recomendo muito a leitura do livro. Não é o clássico “o livro é melhor”, mas nas páginas não temos problemas de estúdio ou preocupação com tempo de duração. Nas páginas, quem manda é o leitor e para contar uma história sobre saúde mental além de um thriller intrigante, sim, o livro cumpre seu papel com maestria. Usando metáforas gastronômicas (porque sim!), o filme é uma excelente entrada, mas o livro… ah, o livro o prato principal. Boa leitura!
Concordo plenamente com você, o filme é raso, mas o livro sim traz a profundidade necessária para que o leitor perceba nas entrelinhas, o que realmente é sofrimento do transtorno de agorafobia de Anna, entre os vários Plots Twists que, ao chegar ao final da leitura, a gente diz “caramba”!
Bom filme a todos, mas lembrando que o livro está há muitos anos luz dessa adaptação