É quase obrigatório começar uma resenha de Admirável Mundo Novo citando a fala de A Tempestade, de Shakespeare, de onde Aldous Huxley tirou o título de sua obra-prima:
Ó, maravilha!
Que adoráveis criaturas aqui estão!
Como é belo o gênero humano!
Ó Admirável Mundo Novo
Que possui gente assim!
Aldous Huxley (1894 – 1963) era parte de uma ilustre família de escritores, cientistas, pensadores. O avô Thomas Henry era chamado de “o buldogue de Darwin” pela feroz defesa que fazia da teoria da evolução das espécies. Desde cedo, Aldous se especializou em sátira social. Escreveu seu quinto romance como uma resposta às utopias do pioneiro da Ficção Científica H. G. Wells, principalmente “Men Like Gods” (1923), e “A Modern Utopia” (1905). Wells era socialista e otimista; imaginava um futuro em que a ciência supriria todas as necessidades, e a humanidade viveria numa sociedade sem governos, sem divisões. Huxley desconfiava que o futuro não seria bem assim.
Ele imaginou uma sociedade que misturava socialismo com capitalismo. Bebês são criados em laboratório e programados geneticamente para as funções que deverão exercer na vida adulta; cada cidadão tem assim seu papel predeterminado. A sociedade é estratificada assim em castas – a elite dos Alfas governa; os Epsilons são criados para o trabalho braçal. Relações sexuais são casuais, e a noção de ter filhos pelas vias naturais é considerada obscena. A liberdade sexual é obrigatória, chegando ao ponto da promiscuidade; os relacionamentos “fixos” são considerados egoístas. Para manter todos felizes e contentes, existe uma droga recreativa liberada (soma) e os feelies, espécie de filmes em realidade virtual. Henry Ford, o idealizador da linha de montagem, substitui Deus como divindade suprema. Mas sempre tem alguém insatisfeito, se não não teríamos história.
O psicólogo Bernard Marx convida a “popular e pneumática” Lenina Crowne para visitar uma reserva onde as pessoas vivem em condições consideradas primitivas. Voltam de lá com John, o Selvagem que volta e meia cita Shakespeare e que se torna por algum tempo uma curiosidade na sociedade londrina. Mas John não se adapta, e sua presença logo expõe os conflitos dessa sociedade.
Huxley escreveu o seu livro bem no meio de uma época que produziu distopias marcantes – na esteira de Nós, de Ievguêni Zamiátin (1924), e antes de Swastika Night, de Katherine Burdekin (1937), Kallocain, de Karin Boye (1940) e 1984, de George Orwell (1949). Mas as motivações e as ideias de Huxley também são contraditórias.
Além de ser uma resposta a Wells, o Mundo Novo de Huxley foi uma reação à viagem do autor aos Estados Unidos em 1926. Lá ele ficou horrorizado com a sociedade consumista, artificial e superficial que viu na Califórnia. Os feelies não eram senão uma extrapolação em cima do cinema falado, surgido em 1927 e ainda novidade quando ele escreveu em 1931.
Por outro lado, a Grande Guerra havia meio que enterrado as utopias, e a Inglaterra vivia uma crise e desemprego sem precedentes. Huxley várias vezes manifestou sua insatisfação com a democracia parlamentarista, que considerava falida, e defendeu um novo sistema governado por pessoas que adotassem políticas “racionais”. Nessa Europa à beira do colapso, ele demonstrou admiração pelo Plano Quinquenal adotado em 1928 na União Soviética. Será que a felicidade meio artificial oferecida no Admirável Mundo Novo não seria preferível a esse cenário sombrio?
O tempo se encarregou de responder. Já em 1935, com Hitler em ascensão, Huxley se manifestou favorável a uma terceira via que combinasse o avanço científico com o livre arbítrio e deixasse espaço para o descontentamento. Em 1937, se mudou pra Los Angeles, onde viveu até o fim da vida. Ainda voltou ao tema algumas vezes, e em 1958 publicou Regresso ao Admirável Mundo Novo, na prática uma série de artigos em que reexaminava a obra original à luz dos avanços científicos nos anos que se seguiram.
Passados mais de 80 anos, hoje até uma especialista em distopias como a Margaret Atwood de O Conto da Aia questiona qual o futuro mais plausível: Admirável Mundo Novo ou 1984? Ou uma mistura dos dois?
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