Faleceu, no dia 12/12/2021, a escritora de ficção gótica Anne Rice.
Vampiros reconfigurados
Na década de 70, ao publicar o romance Entrevista com o Vampiro (1976), Rice reconfigurou o gênero da literatura vampiresca[1] e trouxe, de forma contundente e política, questões acerca do homoerotismo e novas configurações afetivas e sexuais para a cena. A autora joga com elementos do gótico, principalmente do gótico decadentista do sul dos Estados Unidos (ela nasceu em Nova Orleans).
No contexto das décadas de 60 e 70, marcadamente no Estados Unidos, corpos, práticas e subjetividades dissidentes lutavam por direitos, visibilidade e representação. Não raramente, essas “novas” personagens eram vistas como estranhezas que se infiltravam na normatividade e corrompiam as estruturas clássicas da família e da heterossexualidade. Rice, em seu romance, tenciona esses campos de diversas maneiras e expande questionamentos sobre imortalidade, Deus e ética.
A potência queer (estranhas desviantes sexuais) de Entrevista com o Vampiro pulsa tanto no romance que aparece de forma explícita no filme homônimo de 1994, dirigido por Neil Jordan. Com Brad Pitt e Tom Cruise encarnando, respectivamente, Louis e Lestat, o filme é um “frenesi do visível”, com cenas carregadas de homoerotismo.
Kirsten Dunst encarna a vampira criança Claudia, presa eternamente em um corpo infantil. O filme conta, ainda, com Antonio Banderas como Armand (perfeito) e Christian Slater como o jornalista que entrevista Louis.
Anne Rice conta que se aproximou da VHS do filme com um “profundo medo de ser machucada, esmagada, ficar desapontada e destruída pelo trabalho finalizado.” Mas, ao assistir o filme, declarou publicamente seu amor pela obra audiovisual.
Um encontro pessoal
Em um registro muito pessoal, me entendi[2] gay na literatura e no cinema, e Anne Rice desempenha um papel importante nessa trajetória.
Assisti Entrevista com o Vampiro (Neil Jordan) em 1994, no cinema do shopping Rio Sul, com Renato e Krol. Tiveram que parar a exibição no meio devido aos gritos emocionados de adolescentes toda vez que Cruise ou Pitt apareciam.
Na época eu tinha 13 anos, sentimentos e desejos eclipsados pelas narrativas compulsórias sobre heterossexualidades – tudo era uma grande confusão entre atrações não permitidas por homens (principalmente artistas do cinema e da televisão), e o lento desmoronar interno de uma estrutura heterossexual a qual nunca pertenci.
Esses sentimentos encontraram cumplicidade na tela do cinema com Entrevista com o Vampiro. Criaturas noturnas, lânguidas e sensuais, habitavam as noites dos tempos em rituais, diálogos e práticas próprias, distanciadas do mundo do vivos. Nesse outro mundo, outras existências eram possíveis.
As diferenças entre ‘vivos’ e ‘mortos’ podem ser pensadas a partir das questões de gênero e sexualidade: por ‘vivo’ compreende-se o universo dos corpos e sujeitos cis heterossexuais que participam de um cotidiano nítido, com regras e funções demarcadas e pautadas pela família normativa, procriação e trabalho; o mundo dos ‘mortos’ constitui uma experiência na qual todas as fronteiras estão borradas, os corpos não respondem, necessariamente, às amarradas dos desejos heterossexuais nem às performances sexuais de penetrações e órgãos sexuais/sexualizados. Nesse mundo, uma lenta mordida no pescoço ou sorver sangue de uma veia aberta carregam simbolismos, metáforas, códigos e sistemas eróticos.
Fiquei fascinado com a cena na qual Lestat morde Louis (uma sublimação do ato sexual pornográfico por uma lenta e demorada mordida no pescoço). Os dois flutuam na madrugada[3] de uma Luisiana setecentista e, em seguida, Louis abre os olhos para um novo mundo – na verdade, uma nova forma de ver.
Essa ideia dialoga com formas de sentir e perceber o mundo depois de uma intensa transformação. Ou, ainda, como passamos a ver e perceber o mundo depois de nos compreendermos gays: os códigos, gestos, olhares, performances, etc.
Anne Rice e Clarice Lispector
Anne Rice é rotulada como uma autora de ficção gótica, no campo do terror, por abordar elementos, tramas, ambientes e personagens que respondem a essa tradição. Uma das principais características da literatura gótica é a decadência: ambientes abandonados, em ruínas. Nesse sentido, é possível pensar também que essa estratégia das ruínas se irradia para as personagens e seus relacionamentos. Em ‘Entrevista’, tudo parece atravessado, contaminado, pela ruína. A vida é um constante arruinamento.
Vampires, bruxas, lobisomens e múmias são seres que desafiam as categorias pré-estabelecidas, habitam as margens e fronteiras, contaminam os “vivos” e desorganizam o mundo como conhecemos.
No Brasil, Entrevista com o Vampiro foi publicado pela editora Artenova em 1976, e traduzido por Clarice Lispector. Esse encontro inusitado entre Rice e Lispector adensa a obra em um estilo profundo, melancólico e assustador, conduzindo quem estiver lendo o romance aos abismos da existência. Trata-se muito mais de uma versão, uma interpretação, do que um mero exercício de tradução literal. Entrevista como Vampiro aborda temas caros a Clarice Lispector, como religião, mortalidade, finitude, sentido da existência, epifanias do cotidiano…
Notas
[1] Rice foi seguida por Whitley Streiber com o romance The Hunger (1981), narrativa que originou o clássico cult dos anos 80, Fome de Viver (1983), com Catherine Deneuve, Susan Sarandon e David Bowie. Nesses cruzamentos entre sexo, sangue, homoerotismo e morte, a crise da aids/hiv aparece como sintoma de sociedades preconceituosas, racistas, e como mais um lado da necropolítica.
[2] Se entender gay como um processo de lampejos, abertura de desejos, tesões, brechas, atravessado por violências, preconceitos e impactos; “se entender” como o acender de espaços e potências apagadas, adormecidas que, tal qual a monstruosidade de Frankenstein, vem à vida com uma centelha de uma imagem, de uma frase, de uma passagem.
[3] Uma cena semelhante acontece na sexta temporada de Buffy, A Caça-Vampiros, no icônico episódio musical ‘Once More, With Feeling’, na música que Tara canta para Willow. No final, Willow “goes down” em Tara em sexo oral e, cantando, as duas flutuam no quarto, construindo a encenação fantástica de um orgasmo. A letra, na cumplicidade com o gesto, evoca marés, umidade e êxtase. No final, Tara canta “you make me complete” como “you make me cum-plete”.