Coluna

Da importância dos monstros – parte III

“Uma gigantesca onda se avoluma no horizonte, bloqueando o sol e ameaçando qualquer frágil conquista, liberdade ou possibilidade de existir e lutar. A sexualidade será, então, violentamente encerrada. Será expulsa de todos os corpos. A nova família conjugal a destruirá. E a absorverá, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala, se mata, cura-se. O evangelho, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio do segredo.” (Michel Foucault Remix)

A monstruosidade é em relação ao normal – ao zero, ao campo comum no qual todos são forçados a se reconhecer, se esquadrinhar, se recusar, se aceitar e se reconstruir. A monstruosidade é uma categoria móvel, elástica, aplicável ao que é desconhecido, grotesco, abjeto, incômodo; rótulo, prática e experiência que pode ser reivindicada para si ou imposta por Outros.

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A arte pode ser monstruosa – um sinal, uma revelação, um sintoma, um afastamento radical do presente – e re-existe enquanto exercício político do e no corpo (individual, subjetivo, coletivo, cultural, social, econômico…).

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Em linhas gerais, observando a situação moderna e contemporânea, não existe o desejo de dialogar com monstros – a alteridade é capturada, colonizada, explorada, fetichizada, objetificada… mas o desejo de diálogo é frágil, perigoso e aniquilado. E não desejamos dialogar com monstros porque não aturamos/suportamos suas línguas – consideramos um agrupado primordial de grunhidos desarticulados; seus corpos têm cheiros diferentes; não se vestem como nós e não cultuam nossos deuses.

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Pensar-se monstro desorganiza a prática do Mesmo e do Outro. Enquanto alguns se compreendem como guardiões de uma única verdade possível, herdeiros da razão e da luz, não percebem o Outro, o monstro que ameaça a partir de uma exterioridade quase alienígena.

A massa que se move, anônima, por entre as ruas, casas, escolas, igrejas… por todos os dispositivos de disciplina e vigilância, desenha agora para si rostos terrivelmente humanos. As palavras, sequestradas por bocas ferozes e implacáveis, tornam-se um corrosivo vírus que converte, converte, converte… conversão para formar corpo, corpos, volume, excesso; conversão, vírus e alastramento para todos os campos, todas as instâncias – da intimidade do quarto do casal (hétero, homo, isso já não importa, o que importa é a conversão) ao espaço público da (ex)política.

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Ser monstro não é mais uma experiência, um jogo entre o Normal e o Outro; ser monstro é um gesto carnal de se pensar enquanto corpos horríveis; reconhecer que nossas falas, por mais articuladas que imaginamos, serão lidas-ouvidas como um agrupamento abjeto de sons sem sentido; ser monstro é entender que cairão sobre nossos corpos olhares cheios de pena, de raiva, de rancor, de desejo.

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Como insurgir diante da reconfigurada emergência de conservadorismo e moralismos galopantes? É uma onda gigantesca que se avoluma no horizonte, como naqueles filmes-catástrofes… precisamos urgentemente fabricar barcos ou aprender a nadar.

 

 

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