O futebol apaixona porque cada jogo tem elementos de drama, suspense, aventura. Tem heróis que no momento de maior dificuldade são capazes de façanhas incríveis. Em época de Copa do Mundo isso ganha dimensões épicas. Num esporte que atualmente é um negócio bilionário, é fácil ser cético. Mas tem momentos em que é mais do que um jogo. E um deles é contado pelo jornalista escocês Andy Dougan.
Aviso logo: essa resenha foi muito difícil de escrever. É um caso verídico de mais de 70 anos, então o que devo considerar spoiler? Não quero estragar pra quem não conhece, mas tem detalhes inevitáveis.
1941, Segunda Guerra Mundial, e Hitler invade a União Soviética. O futebol, como tudo, para, e os jogadores vão lutar no Exército Vermelho. Kiev, na Ucrânia, resiste por três meses, mas acaba ocupada. Em apenas dois dias, 33 mil judeus são executados. Os ex-combatentes, caçados pelos nazistas, precisam de empregos pra se esconder e não acabarem num campo de prisioneiros. O gerente de uma fábrica de pão, apaixonado torcedor, reconhece um deles, o grandalhão goleiro do Dínamo de Kiev, Nikolai Trusevich, e lhe oferece trabalho. Em pouco tempo, Trusevich leva pra lá vários ex-companheiros, além de jogadores de outro time, o Lokomotiv.
Para apaziguar a população ocupada, os nazistas resolvem em 1942 organizar jogos de futebol. O time da padaria ganha o nome de FC Start. E com os jogadores do Dínamo, vai enfileirando os adversários, formados em grande parte por húngaros e romenos que lutavam ao lado dos alemães. Os nazistas não gostam. Formam então um time com o que tinham de melhor na região, o Flakelf, com integrantes da força aérea, a Luftwaffe. Não podiam perder.
Aqui entramos na parte onde mito e realidade se confundem.
Sem entrar em detalhes, o relato das duas partidas e do que se seguiu são temas de debate até hoje. Dougan tenta desemaranhar todas as versões, e chegar o mais próximo possível da verdade. Alguns pontos da narrativa dele são contestados por outros jornalistas e pesquisadores, mas de modo geral o relato é o mais completo que existe.
Inicialmente, o governo soviético tinha receio de que o episódio estimulasse a resistência ucraniana ao governo central. Mais tarde, Stalin resolveu explorar o episódio. O governo chegou a dizer que todos os jogadores haviam sido fuzilados pelos nazistas no campo, e a partida ganhou o apelido de “Jogo da Morte”. Durante muito tempo essa foi a versão oficial, e os jogadores sobreviventes foram forçados a ficar calados. Depois, sob Kruschev, a história foi reescrita, os sobreviventes condecorados, e os mortos de fato ganharam uma estátua. Um dos jogadores, Goncharenko (foto abaixo) contou várias versões diferentes. Depois da queda da União Soviética, pesquisadores tiveram acesso a arquivos que desmontam a maioria dos exageros soviéticos. Mas as circunstâncias e motivos das execuções continuam sendo discutidos. Um dos jogadores, por exemplo, havia trabalhado para o NKVD, polícia secreta soviética precursora da KGB, e por isso pode ter sido alvo dos alemães. Para Dougan, não há muita dúvida: foram mortos pela ousadia no campo de Kiev.
Na Ucrânia de hoje, nacionalismo, guerra e futebol continuam se encontrando. O pequeno campo Zenit onde 2 mil pessoas assistiram àquela partida hoje recebe times amadores. O país, dividido entre a aproximação com a União Europeia e a ligação passada com a Rússia, vive uma guerra civil. Uma das regiões mais conflagradas é a de Donetsk. É de lá que vem o Shakhtar, o time que nos últimos anos tomou do Dínamo o título de principal time ucraniano, e por onde têm passado tantos jogadores brasileiros. O Shakhtar se mudou para Lviv, na outra ponta do país, pra poder continuar a existir.
Não importam os detalhes, as controvérsias, os exageros. As façanhas dos jogadores ucranianos naquele verão de 1942 têm lugar na história.
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