King é Rei

O Cemitério (livro) – Análise 1:

Dia 09 de maio estreia nos cinemas brasileiros a segunda adaptação do livro “O Cemitério” (Pet Sematary). Um clássico dentro da bibliografia de Stephen King que ganhou um especial de três semanas aqui no site, começando com análise do livro feita por mim e Diego Pale. Um novo olhar em cima da adaptação de 1989, “O Cemitério Maldito”, dirigida por Mary Lambert. As impressões sobre a nova adaptação. E, fechando com chave de ouro, um podcast sobre livro, filmes e curiosidades.

Como boa parte dos livros mais antigos do Stephen King, li pela primeira vez “O Cemitério”, muito nova, principalmente influenciada pelo primeiro filme que estreava nos cinemas. Apesar de ter gostado do livro, ele não me impressionou muito, mas com certeza me deixou com medo. Então, decidiram fazer uma segunda adaptação para o cinema, esse ano, e resolvi reler. Essa é uma obra que, sem dúvida nenhuma, é necessária uma certa maturidade para poder alcançá-la. Toda a trama gira em torno da morte, de lidar com perda e luto. À primeira vista, a história da família perfeita, sem problemas, que se muda para uma bela casa no interior do Maine, á beira de uma estrada movimentada e com um estranho cemitério de bichos no terreno de trás, que acaba devastada por uma perda horrível, parece cruel demais até para o mestre do terror.

O médico Louis Creed, sua esposa Rachel e seus dois filhos, Ellie, de 6 anos e Gage, de 2 anos, formam uma família muito próxima a realidade de muitos. Não há uma grande novidade nessa configuração, já que é a que mais aparece nos livros do King, principalmente porque ele se inspira em tudo que está a sua volta. Mas os Creed parecem não ter problemas. Louis arranja um emprego na Universidade do Maine, no campus perto da pequena cidade de Ludlow, como médico diretor da enfermaria do campus. O livro é todo contado, principalmente, do seu ponto de vista. Não se sabe muito sobre Rachel, que parece ter largado tudo em Chicago para acompanhá-lo nessa nova vida no interior do Maine. Na verdade, a voz de Rachel no livro é quase nula, só ganhando força na terceira parte do livro. Ao mesmo tempo, essa escolha de contar a história a partir da visão de Louis, faz sentido no decorrer do livro para entendermos como todo o acontecido se desenrolou. Louis é o pai amoroso, o marido atencioso, mas tem um grande defeito: é prepotente. Admira o vizinho da frente, Jud Crandall, de quem se sente próximo, mas o vê como um caipira do norte do país. Respeita a esposa, mas acha sua visão sobre a morte exagerada e supersticiosa. Adora a filha mais velha, mas não presta muita atenção nela, afinal é uma criança de seis anos. E essa atitude continua com os colegas de trabalho e tudo mais relacionado à vida do médico. Sem dúvida o maior foco de “O Cemitério” é a morte, mas a prepotência de Louis é pulsante em todas as páginas, em todas as suas decisões e principal condutor de tudo.

Entre escrever o livro e o publicar foram quatro anos. King escreveu a história quando morava no interior do Maine, em uma casa que tinha um cemitério de bichos na colina logo atrás, inspirado pela morte do gato de sua filha. Quando foi revisar o que escreveu, o autor percebeu que era sombrio e macabro demais e resolveu que nunca o publicaria. Com certeza “O Cemitério” é o livro mais sombrio de King, mas também é um dos mais geniais. Claro que me incomoda todo o desenrolar do livro, mas esse incômodo precisa existir num bom livro de terror. Há o caminho fácil, construir cenas óbvias de suspense, ou completamente gore, mas pode levar a um livro enfadonho ou de extremo mal gosto, principalmente se tratando de uma história tão sensível. O que King faz é “brincar” com um dos maiores medos do ser humano: a morte. Não apenas a própria morte, como a de entes queridos. Quando Rachel se sente mal por saber da existência do cemitério de bichos atrás da sua casa e, principalmente, por testemunhar sua filha de seis anos ter o primeiro contato real com a morte, ela volta à sua própria infância e a parte mais assustadora criada por King dentro do livro, o de uma menininha de oito anos que é obrigada a cuidar de sua irmã mais velha que tem uma doença degenerativa. Rachel cresceu observando sua irmã morrer. E quando ela morre, é um grande alívio para a família, assim como para a doente. Mas para uma criança esse é um trauma enorme, carregado de culpa por não entender que aquele alívio é normal. Enquanto Louis acha que a morte deve ser encarada como algo natural, Rachel tem dentro de si esse trauma com a morte bem latente. Para ela, que observou a irmã ficar deformada e definhar, durante a vida toda, não há como entender a morte como algo natural. A grande sacada de King é mostrar que, racionalmente, todos entendemos que a morte é algo natural, mas não significa que aceitamos, nem mesmo Louis, que não pensa duas vezes ao perceber que tem a chance de vencê-la.

Essa é uma história cheia de simbolismos, não apenas relacionados ao fator ciência X superstição, como também dentro da dicotomia natureza X progresso. No terreno além do cemitério de bichos há um antigo cemitério indígena, construído pela tribo dos índios Micmac em uma época impossível de ser detectada. É nele que quem é enterrado volta, mas volta como uma outra coisa. A humanidade é deixada para trás. Jud Crandall, o vizinho que apresenta o cemitério indígena para Louis, acredita que aquela parte do bosque é assombrada pelo Wendigo, um demônio indígena canibal, e que é ele quem se apossa da alma dos mortos enterrados ali. Esse é o elemento sobrenatural que King apresenta em sua história. Ele aparece de forma tímida no início de tudo, como uma lenda na boca de Jud e uma história pitoresca que colore a cidade de Ludlow. Mas a lenda cresce conforme a trama avança, outros elementos vão se apresentando, Louis passa a acreditar nela também e assim como os mortos do cemitério maldito, a história acaba completamente possuída pelo sobrenatural. A forma como Stephen King monta sua história, como ele transforma um romance sobre uma jovem família, construindo sua vida no interior do Maine, em um conto macabro sobre mortos que voltam a vida e demônios indígenas que ganham vida, é fascinante.

“O Cemitério”, lançado no Brasil pela editora Suma e traduzido por Mário Molina, pode ser um livro que por muito tempo foi renegado por King, que parece ter feito as pazes com sua obra ao precisar revê-la para a nova adaptação no cinema. Mas não há como não percebê-lo como uma de suas melhores obras. Não apenas por causa da inspiração, da trama, como, principalmente, da forma que é escrito. Mesmo que você já saiba tudo o que vai acontecer, você se envolve com o texto, se assusta com as partes assustadoras, sofre com a morte do gato Church, fica com raiva de Louis, se afeiçoa por Ellie e Gage e torce MUITO por Rachel. Foi uma experiência gratificante reler “O Cemitério”, mesmo que cheia de angústia por sua história, mas que mais uma vez me lembrou porque me apaixonei pela escrita de King tão cedo e tão rápido.

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