“Aqueles que sonham de dia têm conhecimento de muitas coisas que escapam aos que sonham apenas à noite.” – Edgar Allan Poe
Sonhar – de dia ou à noite – está na origem das histórias que lemos, escrevemos e contamos. Neil Gaiman, exímio contador de histórias, examina como os sonhos moldam nossas narrativas e visões do mundo e de nós mesmos, nessa obra que marcou a carreira dele e que agora chega ao Netflix.
Gaiman fez parte da “Invasão Britânica”, o contingente que, liderado por nomes como Alan Moore e Grant Morrison, transformou os quadrinhos num gênero respeitado e maduro nos anos 1980.
Gaiman pretendia reviver um personagem obscuro da DC Comics, mas acabou apenas mantendo o nome, e de resto recebeu carta branca para, digamos, botar os sonhos no papel. Sandman é o Mestre dos Sonhos, membro de uma família – os Perpétuos – de seres que influenciam as vidas humanas: Sonho, Destino, Desejo, Desespero, Delírio, Destruição e Morte (em inglês, todos começam com a letra “D”).
A história começa quando Sandman é capturado meio sem querer por um grupo de magos com mais ambição do que juízo. Ele passa 70 anos capturado, e nesse tempo os sonhos dos humanos são distorcidos, deturpados, quebrados – Gaiman coloca nesse período os horrores do Século XX como as duas Guerras Mundiais. Quando ele finalmente escapa, tem muito o que fazer – o reino dele, o Sonhar, está abandonado e caótico, e os sonhos estão fora de controle. Morfeu (o nome dele na mitologia grega) vai começar uma jornada para reorganizar seu reino, e ainda vai ter que lidar com as consequências de suas próprias ações duvidosas de séculos atrás.
Ao longo da série, aparecem figuras conhecidas da mitologia, da literatura e dos quadrinhos – e até da vida real. O sonhos estimulados por Sandman são a inspiração para o dramaturgo William Shakespeare, e a encenação de uma peça para elfos e fadas fez do capítulo Sonho de Uma Noite de Verão a primeira história em quadrinhos (ou graphic novel para os mais exigentes) a ganhar o World Fantasy Award.
As interpretações de Gaiman para essas figuras da mitologia e da literatura são altamente pessoais e surpreendentes, e em torno delas ele também cria um elenco próprio de personagens originais marcantes. A fantasia de Gaiman tem dentes – muitos dentes, como é o caso do Coríntio, um pesadelo fora de controle que Morfeu precisa voltar a dominar, e há muitos momentos de terror e tragédia. Gaiman não poupa os personagens, e às vezes até os mais simpáticos têm destinos terríveis.
Sandman é uma grande reflexão sobre o ato de criar e contar histórias. São as histórias que contamos que revelam quem somos – ou quem sonhamos nos tornar.