Livros Resenhas

The Grip of It – a novel

1. Alguns livros nos chamam

Is it harder to begin something or to keep it going?

Julie

Uma história pode demorar para assentar. Não raramente, retorno aos livros que já li, redescubro as narrativas e me aprofundo nas entranhas, nos meandros e interstícios dos textos. É como passear em um corpo, demorar-se na pele, nos cheiros, nos pelos e nos órgãos.

Nossas relações com os livros são estranhas – eles nos chamam, nos convocam, exigindo que saiamos das nossas zonas de conforto e agarremos outros corpos, penetremos em outros espaços. Livros, histórias, narrativas são como entidades que demandam e só descansam (se é que descansam) depois da tormenta. Foi mais ou menos assim que encontrei The Grip of It.

Eu estava atravessando uma crise pessoal, um término complicado, cheio de coisas não ditas, espaços não preenchidos, pontes mal construídas. Encontrei The Grip f It: a novel, de Jac Jemc em uma lista de novas autoras de terror e horror. Como sou apaixonado por histórias de casas assombradas, comprei – era como se, de alguma forma, o livro estivesse me chamando, me esperando.

Li The Grip of It no meio da tempestade de um término de relacionamento. Aos poucos, a história foi crescendo em mim como as raízes de plantas estranhas ou mofos em ambientes úmidos – para usar algumas imagens que a autora utiliza.

2. Relacionamentos Assombrados

Maybe we should share something genuine for once. Stories from the deep, honest pits of us. But what if those buried, fetid stories are the ones that have bubbled to the surface? What if they’re right there, balanced on the edge of our teeth, ready to trip into the world without even our permission?

Jac Jemc, Prologue

Todos os relacionamentos, de um jeito ou de outro, são assombrados, assim como algumas casas; carregados de vícios que se tornam as rachaduras e ranhuras nas fundações mais sólidas. Na mesma época, um amigo estava (re)lendo Marina Colasanti, E por falar em amor (1984), e a metáfora da casa também por lá aparece como esse espaço aos poucos abandonado, estranhado, arruinado.

A casa, no romance de Jemc (como em tantas outras narrativas do gênero), é uma personagem – é, talvez, a personagem mais instigante. Os espaços de intimidade e afastamento, os cômodos e os segredos em cada canto, armário da cozinha ou no porão. Para Jac Jemc, a casa é um corpo que respira, apodrece, contrai e expande. E os fungos (fantasmas, encantamentos, feitiços) que por lá habitam contaminam os novos inquilinos, infestando os sonhos com pesadelos, cadáveres, romances fracassados e famílias fraturadas.

Jac Jemc, em sua escrita econômica e úmida, nos conduz aos interstícios de Julie e James, um casal que atravessa uma crise.

Talvez seja mais que uma crise: trata-se de um casal que tenta se salvar. Para realizar tal extenuante empreendimento, eles se mudam para uma casa longe da cidade grande. Assim, acreditam, ficariam longe do vício de James – que poderia ser qualquer vício, qualquer hábito perigoso e inoculado nas profundezas do nosso hardware que se torna quase impossível discernir vício e sujeito. Um vício, um parasita que, de tempos em tempos, assume o controle. Mas o problema de James é um subterfúgio (narrativo?): a teoria da ruína do jogador, psicologizada pelo terapeuta de James – o jogador aposta até perder porque deseja sentir algo -, aparece no fracasso da aposta do casal. O prólogo é quase um jogo de escolhas e possibilidades.

3. A Casa

We can lose ourselves behind a trapdoor, whether in our mind or in the house.

Julie

A casa para a qual Julie e James se mudam pode ser assombrada. Provavelmente é. Mas funciona, também, como alegoria para o relacionamento; mais que uma alegoria – a casa e o casal, principalmente essas palavras em português, são uma simbiose, a arquitetura e engenharia da família nuclear tradicional. No instante em que entram na nova moradia, em que oferecem seus corpos e afetos (no momento em que se arriscam), as fantasmagorias são ativadas; o passado se alimenta do presente.

O casal, que antes funcionava tão bem – se encaixava perfeitamente – passa a apresentar pequenos defeitos, como engrenagens que não se ajustam; não é apenas o tempo que está fora dos eixos para Julie e James, mas seus corpos, fantasias, expectativas e desejos se desalinham à medida que situações insólitas começam a se desenvolver.

A autora costura de forma interessante a relação de Julie com a casa – elas tornam-se uma simbiose, corpos que se afetam, se transformam, se amalgamam. Importante anotar que, não raramente, a mulher é o canal das assombrações. Como não lembrar de ‘O Papel de Parede Amarelo’, de Charllotte Perkins Gilman, ou de ‘The Haunting of Hill House’, de Shirley Jackson.

At night, on the way to the bathroom, I don’t turn the hall light on. I trace my hand along the wall. I touch something wet and soft. It reminds me of rotten-apple flesh. I think of Julie’s bruise.

James

4. Mudanças

It’s good to get out of your comfort zone. And those people knew all of my secrets. Too many ways information could leak out. I was ready to go into hiding.

Julie

A mudança é um dos motores da narrativa. O casal tenta se ajustar à vida em uma cidade pequena, habitada por casais, bebês, drinks com nomes ridículos e bares que aspiram ao passado industrial – e nada disso exatamente se encaixa, ou melhor, eles parecem não se encaixar nesses cenários artificiais. A casa, a caverna, o mar, o escritos nas paredes, seduzem mais que a vida urbana. Poderíamos ler aí, talvez com algum esforço, uma suave crítica ao hipsterismo e às desorganizações estéticas do tempo, dos afetos e das políticas. Os habitantes da pequena cidade têm sempre algum comentário obscuro sobre a casa, alguma história fragmentada sobre os antigos donos daquela casa, sobre o vizinho assustador…

Simultaneamente, Julie e James precisam aprender a lidar com os espaços vazios. Ou seja, uma mudança de paradigmas e perspectivas: de uma cidade grande e um apartamento pequeno para uma casa grande em uma cidade pequena.

Jemc não aborda essa questão de forma explícita, mas o excesso e o exagero das conectividades e compartilhamentos eternos nas redes sociais paira como um incômodo sobre leitores millenials. Como cultivar segredos, intimidades, privacidades?

Começar uma nova vida, longe dos velhos novos hábitos, pode ser aterrorizante.

5. Não exatamente um fim

What is worse? To be confronted with an obvious horror, or to be haunted by a never-ending premonition of what’s ahead?

James

O que pode ser uma assombração? Fantasmas dos nossos passados e dos nossos possíveis futuros. Manifestações que rondam nossas experiências e jogam com a nossa percepção. Inquietações que retornam dos traumas, dos pesadelos; fantasmas, assombrações são, também, por sua vez, fantasias que alimentamos, exercitamos e às quais emprestamos substância, densidade e espessura.

Jac Jemc escreve nos interstícios do insólito, conduzindo à uma dramática e visceral incerteza.

A narrativa oscila entre os pontos-de-vista de Julie e James, sempre em primeira pessoa, em capítulos curtos (o que parece ser uma estratégia para uma geração Instagram e Twitter) e potentes. A linguagem se mistura aos corpos das personagens, com descrições e imagens que convocam movimentos de pele, textura de órgãos, organicidades úmidas, aquosas; corpos, objetos, cheiros, sensações convergem em fluxos e experiências que se encontram, se fundem e se separam, deixando rastros e resíduos.

A escrita de Jemc produz fortes e agônicas imagens através de usos e formas não tradicionais da linguagem, jogando com construções semânticas inesperadas e atualizando metáforas.

5,5. ?

The Grip if It poderia, também, ser observado em um contexto de profundas mudanças políticas no qual as podridões e apodrecimentos do passado ressurgem no presente, contaminando corpos e vida, desestabilizando (ainda mais) as fronteiras entre uma sanidade saudável e uma insanidade de aprofundamentos e vertigens. No contexto Trump-crise, o livro de 2017 revela também o isolamento, medo, ansiedades e angústias de um jovem casal de classe média e seus (prováveis) straight white people problems.

Li The Grip of It no meio de um ciclone pessoal. Foi uma experiência desterritorializante e potente acompanhar o assombramento de Julie e James enquanto vivenciava o meu próprio – o desmoronamento, o abandono de uma casa mal construída e cheia de fantasmas, o ter-que-ir-embora. Como escreve Carmen Maria Machado no delirante e maravilhoso conto Especially Heinous – 272 Views of Law & Order: SVU, é necessário que aprendamos a escolher nossas batalhas.

Nesse sentido, o livro de Jac Jemc é, também, um horror diante de todas as possibilidades: como escolher? Às vezes a gente ganha, às vezes a gente perde; às vezes a gente acerta, às vezes a gente erra – e, quase sempre, o horror mais profundo e incômodo é aquele sutil, cotidiano, que se infiltra sem que percebamos, como líquidos por trás das coisas, mofando, fazendo ruídos estranhos, até ser tarde demais.

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