Ursula K. Le Guin é um caso raro de alguém cujo trabalho superou o preconceito do meio acadêmico contra a literatura fantástica, e teve os méritos literários reconhecidos. Já falamos aqui da série Terramar (leia a resenha de “O Feiticeiro de Terramar”), a mais conhecida dela. Mas a obra de Le Guin é tão rica que merece um olhar mais a fundo, até porque são poucos os livros dela disponíveis em português.
Le Guin se começou a se destacar nos anos 1960, quando a ficção científica passava por grandes transformações estéticas e temáticas. Os conflitos que ela narra não são guerras espaciais: são conflitos de ideias, de visões divergentes de mundo, de gênero, de ética. Os dois romances que mais demonstram isso conseguiram o feito raro de ganhar a dobradinha dos principais prêmios da FC, o Hugo e o Nebula.
Em “A Mão Esquerda da Escuridão” (1969), um emissário se envolve num conflito ao tentar convencer o planeta Gethen a se juntar a uma espécie de federação espacial. Mas o ponto central não é esse: é o contato com uma sociedade onde literalmente não há distinção de gênero, em que os indivíduos assumem temporariamente características masculinas ou femininas apenas durante o período fértil.
“Os Despossuídos” (1974) tem o subtítulo de “Uma Utopia Ambígua”. Trata da tentativa de um cientista em reconciliar o planeta Urras e uma ex-colônia, Anarres. Urras tem recursos naturais abundantes. Mas é uma sociedade dividida em classes sociais, com evidentes desigualdades e disputas. Anarres é árido, mas é uma utopia anarquista. Não há governo nem propriedade individual, todos contribuem para o coletivo, e a língua (outro elemento forte em Le Guin) não tem pronomes possessivos, porque o próprio conceito de propriedade foi abolido. E no entanto, alguns vêem nisso repressão e sentem falta de liberdade individual – algo que é super valorizado em Urras.
Quem se arriscar no inglês ainda pode descobrir “The Lathe of Heaven” (1971). Um um homem cujos sonhos alteram a realidade é manipulado por um psiquiatra com resultados desastrosos. Ao tentar acabar com o racismo, por exemplo, vê ao acordar que todo o mundo tem a pele cinza. E a coisa só piora… “The Word for World is Forest” (1976) é um manifesto ambientalista e uma nada sutil referência à guerra do Vietnã. Uma corporação interplanetária explora um planeta em que os habitantes vivem em harmonia com a natureza – até que os pacíficos nativos se revoltam. Le Guin poderia facilmente ter processado James Cameron por plágio em “Avatar”…
Nos últimos anos, publicou três excelentes volumes de artigos, crônicas e reflexões sobre a literatura, “Words Are My Matter”, “No Time To Spare”, e “Dreams Must Explain Themselves”.
Em 2014, ao receber o National Book Award, fez uma defesa veemente dos “colegas escritores de fantasia e ficção científica, escritores da imaginação”, que durante anos se viram preteridos em favor dos “supostos realistas”. “Estamos chegando em tempos difíceis”, disse Le Guin, “em que vamos precisar das vozes de escritores capazes de enxergar alternativas ao modo como vivemos hoje, de ver além da nossa sociedade paralisada pelo medo e obcecada com a tecnologia, ver outras maneiras de ser, e até imaginar bases concretas para a esperança. Precisaremos de escritores que consigam se lembrar da liberdade – poetas, visionários – os “realistas” de uma realidade mais ampla”. Escritores como Ursula K. Le Guin.