Coluna

Handmaid’s tale e a vida depois do livro

Handmaid’s Tale estreou em 2017 com uma primeira temporada forte, baseada no livro homônimo escrito por Margaret Atwood, em 1985 e que se mostra muito atual. Talvez razão pela qual a série faz tanto sucesso. Ela mostra que em um futuro distópico, as mulheres deixam de ser livres para passarem a cumprir papeis designados pelo governo facista e pratiarcal de Gilead. As mulheres que ainda são férteis se tornam aias, perdem suas identidades e passam a ser reconhecidas como propriedade dos homens da casa para as quais são designadas. Por exemplo, June, a personagem principal, passa a ser Offred – algo como “De Fred”. Mas o principal propósito das aias é o de procriar. Elas participam de cerimônias em que são estupradas pelos donos da casa com o aval das esposas. Os acontecimentos da primeira temporada são contados quase que todo a partir do ponto de vista de June e consegue atualizar muito bem o texto de Atwood, dando mais vida a personagens que apenas são citados no livro e mais força a June.

Com o fim da primeira temporada também termina o livro, o que sobra para as segunda e terceira temporadas é especulação do que teria acontecido com aqueles personagens. Claro que havia uma curiosidade sobre como continuaria a história de June e todas as outras mulheres presas em Gilead e por mais que soubéssemos que aquela era uma série violenta, nada se compara à violência física e psicológica que acontece na segunda temporada. June precisa ser educada novamente para poder voltar para a casa dos Waterfords, enquanto também conhecemos as colônias, para onde mandam as mulheres que não tem mais nenhuma serventia a Gilead. As colônias são campos de concentração onde mulheres são forçadas a fazerem trabalho escravo. Se a primeira temporada flertava com a esperança, a segunda mostra que há quase nenhuma para as mulheres de Gilead.

Não consigo deixar de notar que Handmaid’s Tale é adaptado para a televisão por um homem, Bruce Miller, e por mais que a maioria dos episódios seja dirigido por mulheres, com roteiros de episódios também escritos por mulheres, há a mão de Miller por trás de tudo. Na segunda temporada fica muito clara a visão masculina em alguns momentos, principalmente na crescente violência contra as personagens, o que cria um desconforto desnecessário, quase um mal-estar. Principalmente porque ela beira o fetichismo, de uma forma que nós mulheres não aguentamos mais nos ver sofrer na tela, seja no cinema, seja na televisão. Entendo que a principal ideia da série é denunciar o que vem acontecendo com mulheres pelo mundo, já que muitas já vivem como em Gilead há muitos anos. Mas a forma como a segunda temporada faz essa denúncia está muito mais próxima da violência gratuita do que da denúncia em si.

Foi difícil passar pela segunda temporada, foi difícil ver June sofrer, Emilly sofrer, não ver uma luz no fim do túnel. Todo o arco de June nesta temporada é dolorido, violento e torturante. Além de que ver mulheres acuadas se virarem umas contra as outras é uma ideia que não combina com o mundo que vivemos. Acaba acontecendo uma união no fim, mas bem dúbia e construída em cima de segundas intenções. Uma visão bem masculina sobre como mulheres acuadas se comportariam, quando na verdade sabemos que unidas somos muito mais fortes.

Para essa terceira temporada, que acabou de acabar, parece que algumas críticas foram absorvidas e a violência contra as mulheres diminuiu um pouco. Voltamos a ter uma narrativa de verdade, com melhor construção de cenários e personagens. Mais personagens secundários ganharam destaques, como as Martas. Aprendemos um pouco sobre o passado da Tia Lydia e June finalmente entendeu seu papel dentro do todo. Ao mesmo tempo, o debate sobre a vida fora do confinamento, como voltar a ser normal, depois de viver por alguns anos sobre ameaça constante e sem nenhuma liberdade, abre uma nova linha narrativa interessante dentro da série. Há também um maior foco no arco de Serena, que leva a alguns vícios antigos, como o da necessidade de ter uma vilã. Mas é interessante observara que nem ela pode ser livre dentro de Gilead, mesmo que ela tenha ajudado a fundar aquele novo governo fundamentalista. A temporada também mostra o horror que é a capital do país. Suas leis severas em relação às mulheres. É como se fosse preciso que June visitasse o último círculo do inferno e percebesse que se não começasse um movimento para mudar aquela realidade, a sua vida se tornaria muito pior. Mas essa terceira temporada vislumbra a luz no fim do túnel, mostra a força das mulheres unidas e a força de uma pessoa que se recusa a se dobrar.

É interessante perceber como Handmaid’s Tale dialoga diretamente com nossa realidade, principalmente quando muitos percebem a importância de se manter desperto para o mundo ao redor, de perceber as diferenças e reconhecer lugares de fala. June era completamente alheia a realidade à sua volta e se torna uma vítima direta dessa alienação. Precisou que tudo acontecesse como aconteceu para que ela despertasse e percebesse seu lugar naquele mundo e qual o seu papel. Uma excelente alegoria sobre a realidade que vivemos, em um mundo sendo tomado de assalto pela extrema-direita, mostrando que as mulheres precisam cada vez mais estar desperta para o mundo ao seu redor ou ele irá nos engolir. Cada vez mais precisamos nos unir, reconhecer nossos privilégios e dar a mão para as mulheres que não tem o mesmo poder de fala. O futuro precisa ser feminino.

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