Livros Resenhas

O Sol é para todos


Sob o ponto de vista de Scout, uma criança nascida e criada no Sul dos Estados Unidos nos anos 1930, conhecemos a vida pacata e rural de Maycomb, um pequeno município de Alabama, rodeado por injustiças, preconceitos raciais e sociais. Com uma narrativa perspicaz e sensível, acompanhamos o caso do advogado Atticus Finch, seu pai, que aceita defender um negro acusado de estuprar uma mulher branca. Embora o racismo seja o tema mais forte do livro, motivo pelo qual foi e continua sendo tão importante para a literatura, a autora, Harper Lee, foi muito além com seu romance. Ao descrever as aventuras de Scout e seu irmão, Jem, e o amigo deles, Dill, Lee nos transporta para uma realidade atemporal, sobre tolerância, respeito e, sobretudo, empatia.

Eu poderia começar falando sobre o quanto esse livro impactou a literatura, que venceu o prêmio Pulitzer em 1961, que foi escolhido pelo Library Journal como o melhor romance do século XX e eleito pelos leitores da Modern Library um dos 100 melhores romances em língua inglesa desde 1900. Ou que em 2006 entrou na lista dos bibliotecários como o livro que todos deveriam ler antes de morrer, seguido da Bíblia, e que por causa disso decidi escrever sobre ele aqui no Cheiro de Livro. Poderia também fazer uma lista das obras que foram influenciadas por Harper Lee, no cinema e na literatura, mas — apesar de ter acabado de fazer justamente isso — prefiro falar um pouco do universo de Scout e da autora, Harper Lee, que deu voz ao próprio passado, quando morava em Monroeville, Alabama, e principalmente o motivo pelo qual a obra me marcou tanto.

Quem me conhece sabe o quanto sou insuportável quando o assunto é julgar e condenar os outros; sempre bato na mesma tecla e defendo o direito de cada um ter sua opinião, além de acreditar que nem sempre é uma questão de estar certo ou errado. Atticus Finch, o pai da nossa querida Scout, ao escolher defender um negro nos anos 1930 num estado que, poucos anos antes, foi para a guerra a fim de manter a escravidão, é, no mínimo, um ato de bravura. E o que torna sua história ainda mais bonita é que o personagem, considerado herói moral para muitos leitores e um modelo de integridade para advogados, foi baseado no próprio pai da autora, que, assim como Finch, também defendia negros em uma época de segregação racial pós-Ku Klux Klan, num lugar onde 70% da população era branca.

Imagina só que a integração nas escolas aconteceu apenas em 1960, ano em que o livro foi lançado, trinta anos depois da história da Scout. Aliás, aproveito para fazer uma ponte aqui com a história de Ruby Bridges, uma das primeiras negras a estudar numa escola só de brancos. Ela relata o início da integração e como foi frequentar um lugar que por um ano letivo inteirinho lecionou apenas para cinco alunos, sendo ela a única negra. Todos os outros alunos foram retirados da escola pelos pais que não admitiam que seus filhos estudassem com uma criança negra.

Tendo isso em vista, até consigo entender por que a obra de Harper Lee não ganhou na época a atenção merecida da crítica e o fato de ter sido proibida nas escolas do Texas em 1996 porque oh well “conflitavam com os valores da comunidade”. A popularidade do livro veio com o tempo e agora O Sol é para todos é visto na crítica como “o livro que aborda a questão racial mais lido dos Estados Unidos no século XX”; e até hoje vende mais de um milhão de cópias por ano em língua inglesa.

Por coincidência, quando li pela primeira vez O sol é para todos, por volta de 2001, eu tinha acabado de ler E o vento levou, de Margaret Mitchell, sobre a diva Scarlett O’Hara durante os primeiros anos que sucederam a Guerra Civil americana. Foi na mesma época que vi Mississipi em Chamas; e juntando ao currículo filmes que vi na infância como A outra história americana, Tempo de matar e A cor púrpura, digamos que eu estava totalmente submergida no assunto. Talvez por esse motivo, o fato de alguém como Atticus Finch existir numa cidade provinciana, crua e conformista tenha me emocionado de um jeito que marcou para sempre a minha vida. Ele é mesmo um herói. Ele é exatamente o que a srta. Maudie diz para Scout no livro: “… há homens neste mundo que nasceram para fazer o trabalho duro para nós. O pai de vocês é um desses.”

Para compor o enredo de O Sol é para todos, a autora se baseou em muitas das suas memórias de infância o que tornou a história tão palatável. Boo Radley, o albino que nunca era visto, foi inspirado num vizinho de Harper que vivia recluso, Dill em Truman Capote, amigo de infância da autora, e, apesar de serem situações bem diferentes, o caso de 1931 dos nove garotos negros condenados à cadeira elétrica, acusados de estuprarem duas jovens brancas – que até virou filme A busca pela justiça (2006) – também serviu de inspiração para o ficcional Tom Robinson injustamente acusado de estupro.

Para quem não sabe, a obra de Harper deu origem ao filme homônimo, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado, dirigido por Robert Mulligan e estrelado por Gregory Peck, que também recebeu a estatueta de ator em 1963, ganhando do querido Burt Lancaster pelo papel de O Homem de Alcatraz. Assim como o livro, o filme também é uma obra-prima e recomendo com vigor, principalmente pela atuação de Peck como Atticus… É fenomenal. A cena do discurso no tribunal de nove minutos foi filmada em uma só tomada e – ADIVINHA – uma ÚNICA vez! Harper Lee e Gregory Peck se tornaram grandes amigos durante as filmagens; a autora chegou a presentear Peck com o relógio do pai, e ele, sendo fofo do jeito que era, usou o acessório na premiação do Oscar . <3 Só tenho amor por esses dois.

Querem saber mais trivias sobre o filme? Walt Disney falou na época que era o tipo de filme que ele gostaria de ter feito tamanha era sua admiração pela obra e logo depois se inspirou nela para fazer Mary Poppins. E você sabia que esse é o filme favorito de Clark Kent dos quadrinhos? Hehehe. É a cara do Superman ter como herói Atticus Finch!

É incrível que essa história seja tão atemporal… e esse assunto tão atual! É difícil engolir que as pessoas ainda hoje enxergam diferença entre brancos e negros, que ainda exista racismo e também homofobia e tantas outras injustiças. Harper Lee viveu numa época de segregação, em que a humanidade estava dividida em todos os sentidos da palavra. Ela tinha tudo para acreditar, como muitos acreditavam, na “supremacia branca”, mas lutou contra isso da melhor maneira que pôde. A autora morreu recentemente, no dia 19 de fevereiro de 2016, e deixou um legado que certamente inspirou e vai continuar inspirando muita gente a fazer o mesmo. Como disse a Ruby Bridges: “Racismo é uma doença de adulto, não devemos contaminar as crianças”. Uma vez que as crianças parem de enxergar as diferenças, os adultos de amanhã estarão curados.

Tem tanta empatia no livro através das palavras de Atticus que chega a transbordar das páginas e se junta às lágrimas do leitor. Seus diálogos são aulas de respeito ao próximo, de tolerância, são exemplo de saber enxergar com olhos de um estranho. O Sol é para todos é um livro primordialmente sobre não julgar, não condenar, de oferecer sempre a sombra de dúvida, e acima de tudo acreditar que (nas palavras de Atticus Finch) “a maioria das pessoas é boa, quando enfim as conhecemos”.

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