Livros Resenhas

Território Lovecraft

Um dos aspectos mais interessantes da literatura de horror é enxergar como os monstros mais fantásticos refletem os medos e incertezas do mundo real. E talvez não exista horror pior do que o racismo.

Em tempos de discussões sobre o racismo, sobre a cultura do cancelamento, e o debate sobre se é possível continuar a apreciar a obra de autores e artistas que têm posições problemáticas, Matt Ruff apresenta uma resposta interessante. Ele pega os temas e tramas de H. P. Lovecraft, que era racista, para examinar e subverter as relações de poder e opressão nos Estados Unidos da segregação racial.

Em Território Lovecraft, de Matt Ruff (Intrínseca, trad. Thais Paiva), estamos em 1954, portanto antes do auge do movimento dos direitos civis nos anos 60. Atticus Turner está atravessando o país para socorrer o pai, mantido prisioneiro por um grupo ocultista, no interior de Massachusetts – no coração da região em que Lovecraft ambientou a maioria de suas histórias. Atticus é negro, e a família dele tem uma ligação com o líder da seita que remonta ao tempo da escravidão. Atticus, parentes e amigos são explorados cada vez mais pela seita em troca de aparentes chances de ascensão social. Por exemplo, uma amiga tem uma conveniente facilidade para comprar uma casa num bairro “branco” de Chicago – mas é claro que a casa é assombrada. Em outro capítulo, a irmã dessa amiga recebe de presente uma poção que a transforma numa mulher branca, e assim de repente se vê livre do constrangimento do preconceito – mas tudo tem um preço.

Matt Ruff (foto: Lisa Gold)

A narrativa é episódica, e de propósito. A ideia original de Matt Ruff era para uma série de televisão. Estava praticamente pronto pra adaptação da HBO. Cada capítulo conta uma história, e o envolvimento da família com a seita vai crescendo até a resolução do tipo “final de temporada”.

De quebra, Matt Ruff toca numa ferida do próprio gênero fantástico. Atticus é fã de ficção científica, aparece lendo Ray Bradbury e Edgar Rice Burroughs. Mas tem a consciência de que (pelo menos na época em que a história se passa) é um gênero de autores brancos. E Lovecraft é o símbolo maior disso, por sua posição declaradamente racista. Assim Ruff contribui para uma releitura crítica da obra de Lovecraft, como já falamos aqui. O escritor foi corajoso: Ruff é branco, e escrever uma história em torno de protagonistas negros é se expor a críticas e acusações de apropriação cultural. Mas os personagens são muito bem desenhados, sem clichês, caricaturas ou condescendência.

E nem tudo é sombrio. Ruff sabe dosar bem o humor e a ironia na narrativa. Logo no começo, por exemplo, Atticus é parado na estrada por um policial branco. Quando o policial pergunta o que tem na mala do carro, e Atticus responde que tem livros de ficção científica, é aí que o policial desconfia e manda Atticus sair do carro…

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